CARTA ENCÍCLICA LUMEN FIDEI
DO SUMO PONTÍFICE FRANCISCO
AOS
BISPOS
AOS
PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS,
ÀS
PESSOAS CONSAGRADAS
E
A TODOS OS FIÉIS LEIGOS
SOBRE A FÉ
2.
E contudo podemos ouvir a objeção que se levanta de muitos dos nossos contemporâneos,
quando se lhes fala desta luz da fé. Nos tempos modernos, pensou-se que tal luz
poderia ter sido suficiente para as sociedades antigas, mas não servia para os
novos tempos, para o homem tornado adulto, orgulhoso da sua razão, desejoso de
explorar de forma nova o futuro. Nesta perspetiva, a fé aparecia como uma luz
ilusória, que impedia o homem de cultivar a ousadia do saber. O jovem Nietzsche
convidava a irmã Elisabeth a arriscar, percorrendo vias novas (…), na incerteza
de proceder de forma autónoma. E acrescentava: «Neste ponto, separam-se os
caminhos da humanidade: se queres alcançar a paz da alma e a felicidade, contenta-te
com a fé; mas, se queres ser uma discípula da verdade, então investiga».[3]
O
crer opor-se-ia ao indagar. Partindo daqui, Nietzsche desenvolverá a sua crítica
ao Cristianismo por ter diminuído o alcance da existência humana, espoliando a
vida de novidade e aventura. Neste caso, a fé seria uma espécie de ilusão de
luz, que impede o nosso caminho de homens livres rumo ao amanhã.
3. Por este caminho, a fé
acabou por ser associada com a escuridão. E, a fim de conviver com a luz da
razão, pensou-se na possibilidade de a conservar, de lhe encontrar um espaço: o
espaço para a fé abria-se onde a razão não podia iluminar, onde o homem já não
podia ter certezas. Deste modo, a fé foi entendida como um salto no vazio, que
fazemos por falta de luz e impelidos por um sentimento cego, ou como uma luz
subjetiva, talvez capaz de aquecer o coração e consolar pessoalmente, mas
impossível de ser proposta aos outros como luz objetiva e comum para iluminar o
caminho. Entretanto, pouco a pouco, foi-se vendo que a luz da razão autónoma
não consegue iluminar suficientemente o futuro; este, no fim de contas,
permanece na sua obscuridade e deixa o homem no temor do desconhecido. E,
assim, o homem renunciou à busca de uma luz grande, de uma verdade grande, para
se contentar com pequenas luzes que iluminam por breves instantes, mas são
incapazes de desvendar a estrada. Quando falta a luz, tudo se torna confuso: é
impossível distinguir o bem do mal, diferenciar a estrada que conduz à meta
daquela que nos faz girar repetidamente em círculo, sem direção.
4.
Por isso, urge recuperar o caráter de luz que é próprio da fé, pois, quando a
sua chama se apaga, todas as outras luzes acabam também por perder o seu vigor.
De facto, a luz da fé possui um caráter singular, sendo capaz de iluminar toda
a existência do homem. Ora, para que uma luz seja tão poderosa, não pode dimanar
de nós mesmos; tem de vir de uma fonte mais originária, deve porvir em última
análise de Deus. A fé nasce no encontro com o Deus vivo, que nos chama e revela
o seu amor: um amor que nos precede e sobre o qual podemos apoiar-nos para construir
solidamente a vida. Transformados por este amor, recebemos olhos novos e
experimentamos que há nele uma grande promessa de plenitude e se nos abre a
visão do futuro. A fé, que recebemos de Deus como dom sobrenatural, aparece-nos
como luz para a estrada orientando os nossos passos no tempo. Por um lado,
provém do passado: é a luz duma memória basilar – a da vida de Jesus –, onde o
seu amor se manifestou plenamente fiável, capaz de vencer a morte. Mas, por
outro lado e ao mesmo tempo, dado que Cristo ressuscitou e nos atrai de além da
morte, a fé é luz que vem do futuro, que descerra diante de nós horizontes grandes
e nos leva a ultrapassar o nosso «eu» isolado abrindo-o à amplitude da comunhão.
Deste modo, compreendemos que a fé não mora na escuridão, mas é uma luz para as
nossas trevas. Dante, na Divina Comédia,
depois de ter confessado diante de São Pedro a sua fé, descreve-a como uma
«centelha/que se expande depois em viva chama/e, como estrela no céu, em mim
cintila»[4]. É precisamente desta luz
da fé que quero falar, desejando que cresça a fim de iluminar o presente até se
tornar estrela que mostra os horizontes do nosso caminho, num tempo em que o
homem vive particularmente carecido de luz.
5.
Antes da sua paixão, o Senhor assegurava a Pedro: «Eu roguei por ti, para que a
tua fé não desfaleça» (Lc 22,32). Depois,
pediu-lhe para «confirmar os irmãos» na mesma fé. Consciente da tarefa confiada
ao Sucessor de Pedro, Bento XVI quis proclamar este Ano da Fé, um tempo de graça que nos tem ajudado a sentir a grande
alegria de crer, a reavivar a perceção da amplitude de horizontes que a fé
descerra, para a confessar na sua unidade e integridade, fiéis à memória do
Senhor, sustentados pela sua presença e pela ação do Espírito Santo. A
convicção duma fé que faz grande e plena a vida, centrada em Cristo e na força
da sua graça, animava a missão dos primeiros cristãos. Nas Atas dos Mártires,
lemos este diálogo entre o prefeito romano Rústico e o cristão Hierax: «Onde
estão os teus pais?» – perguntava o juiz ao mártir; este respondeu: «O nosso verdadeiro
pai é Cristo, e nossa mãe a fé nele»[5]. Para aqueles cristãos, a
fé, enquanto encontro com o Deus vivo que se manifestou em Cristo, era uma «mãe»,
porque os fazia vir à luz, gerava neles a vida divina, uma nova experiência,
uma visão luminosa da existência, pela qual estavam prontos a dar testemunho
público até ao fim.
6.
O Ano da Fé teve início no cinquentenário
da abertura do Concílio Vaticano II. Esta coincidência permite-nos ver que o
mesmo foi um Concílio sobre a fé[6], por nos ter convidado a
repor, no centro da nossa vida eclesial e pessoal, o primado de Deus em Cristo. Na verdade, a
Igreja nunca dá por descontada a fé, pois sabe que este dom de Deus deve ser
nutrido e revigorado sem cessar para continuar a orientar o caminho dela. O
Concílio Vaticano II fez brilhar a fé no âmbito da experiência humana,
percorrendo assim os caminhos do homem contemporâneo. Desta forma, se viu como
a fé enriquece a existência humana em todas as suas dimensões.
7.
Estas considerações sobre a fé – em continuidade com tudo o que o magistério da
Igreja pronunciou acerca desta virtude teologal[7] – pretendem juntar-se a
tudo aquilo que Bento XVI escreveu nas cartas encíclicas sobre a caridade e a
esperança. Ele já tinha quase concluído um primeiro esboço desta carta
encíclica sobre a fé. Estou-lhe profundamente agradecido e, na fraternidade de
Cristo, assumo o seu precioso trabalho, limitando-me a acrescentar ao texto
qualquer nova contribuição. De facto, o Sucessor de Pedro, ontem, hoje e
amanhã, sempre está chamado a «confirmar os irmãos» no tesouro incomensurável
da fé que Deus dá a cada homem como luz para o seu caminho.
Na
fé, dom de Deus e virtude sobrenatural por Ele infundida, reconhecemos que um
grande Amor nos foi oferecido, que uma Palavra estupenda nos foi dirigida:
acolhendo esta Palavra que é Jesus Cristo – Palavra encarnada –, o Espírito
Santo transforma-nos, ilumina o caminho do futuro e faz crescer em nós as asas
da esperança para o percorrermos com alegria. Fé, esperança e caridade constituem,
numa interligação admirável, o dinamismo da vida cristã rumo à plena comunhão
com Deus. Mas, como é este caminho que a fé desvenda diante de nós? Donde
provém a sua luz, tão poderosa que permite iluminar o caminho duma vida bem
sucedida e fecunda, cheia de frutos?
ACREDITÁMOS
NO AMOR
(cf. 1Jo 4,16)
9.
Esta Palavra comunica a Abraão um chamamento e uma promessa. Contém, antes de
tudo, uma chamada a sair da própria terra, convite a abrir-se a uma vida nova,
início de um êxodo que o encaminha para um futuro inesperado. A perspetiva, que
a fé vai proporcionar a Abraão, estará sempre ligada com este passo em frente que
ele deve realizar: a fé «vê» na medida em que caminha, em que entra no espaço
aberto pela Palavra de Deus. Mas tal Palavra contém ainda uma promessa: a tua
descendência será numerosa, serás pai de um grande povo (cf. Gn 13,6; 15,5; 22,17). É verdade que a
fé de Abraão, enquanto resposta a uma Palavra que a precede, será sempre um ato
de memória; contudo esta memória não o fixa no passado, porque, sendo memória
de uma promessa, se torna capaz de abrir ao futuro, de iluminar os passos ao longo
do caminho. Assim se vê como a fé, enquanto memória do futuro, está intimamente
ligada com a esperança.
11.
Há ainda um aspeto da história de Abraão que é importante para se compreender a
sua fé. A Palavra de Deus, embora traga consigo novidade e surpresa, não é de
forma alguma alheia à experiência do Patriarca. Na voz que se lhe dirige,
Abraão reconhece um apelo profundo, desde sempre inscrito no mais íntimo do seu
ser. Deus associa a sua promessa com aquele «ponto» onde, desde sempre, a
existência do homem se mostra promissora, ou seja, a paternidade, a geração
duma nova vida: «Sara, tua mulher, dar-te-á um filho, a quem hás de chamar
Isaac» (Gn 17,19). O mesmo Deus que
pede a Abraão para se confiar totalmente a Ele, revela-se como a fonte donde
provém toda a vida. Desta forma, a fé une-se com a Paternidade de Deus, da qual
brota a criação: o Deus que chama Abraão é o Deus criador, aquele que «chama à
existência o que não existe» (Rm 4,17),
aquele que, «antes da fundação do mundo, (...) nos predestinou para sermos adotados
como seus filhos» (Ef 1,4‑5). No caso
de Abraão, a fé em Deus ilumina as raízes mais profundas do seu ser:
permite-lhe reconhecer a fonte de bondade que está na origem de todas as
coisas, e confirmar que a sua vida não deriva do nada nem do acaso, mas de uma
chamada e um amor pessoais. O Deus misterioso que o chamou não é um Deus
estranho, mas a origem de tudo e que tudo sustenta. A grande prova da fé de
Abraão, o sacrifício do filho Isaac, manifestará até que ponto este amor
originador é capaz de garantir a vida, mesmo para além da morte. A Palavra que
foi capaz de suscitar um filho no seu corpo «já sem vida (…), como sem vida
estava o seio» de Sara estéril (Rm 4,19),
também será capaz de garantir a promessa de um futuro para além de qualquer
ameaça ou perigo (cf. Heb 11,19; Rm 4,21).
14.
Na fé de Israel, sobressai também a figura de Moisés, o mediador. O povo não
pode ver o rosto de Deus; é Moisés que fala com Jahvé na montanha e comunica a
todos a vontade do Senhor. Com esta presença do mediador, Israel aprendeu a caminhar
unido. O ato de fé do indivíduo insere‑se numa comunidade, no « nós » comum do
povo, que, na fé, é como um só homem: «o meu filho primogénito», assim Deus
designará todo o Israel (cf. Ex 4,22).
Aqui a mediação não se torna um obstáculo, mas uma abertura: no encontro com os
outros, o olhar abre-se para uma verdade maior que nós mesmos. Jean Jacques
Rousseau lamentava-se por não poder ver Deus pessoalmente: «Quantos homens entre
mim e Deus!»[11] «Será assim tão simples e
natural que Deus tenha ido ter com Moisés para falar a Jean Jacques Rousseau?»[12] A partir de uma conceção
individualista e limitada do conhecimento é impossível compreender o sentido da
mediação: esta capacidade de participar na visão do outro, saber compartilhado
que é o conhecimento próprio do amor. A fé é um dom gratuito de Deus, que exige
a humildade e a coragem de fiar-se e entregar-se para ver o caminho luminoso do
encontro entre Deus e os homens, a história da salvação.
15.
«Abraão (...) exultou pensando em ver o meu dia; viu-o e ficou feliz» (Jo 8,56). De acordo com estas palavras
de Jesus, a fé de Abraão estava orientada para Ele, de certo modo era visão
antecipada do seu mistério. Assim o entende Santo Agostinho, quando afirma que
os Patriarcas se salvaram pela fé; não fé em Cristo já chegado, mas fé em Cristo
que havia de vir, fé proclive para o evento futuro de Jesus[13]. A fé cristã está centrada
em Cristo; é confissão de que Jesus é o Senhor e que Deus o ressuscitou de
entre os mortos (cf. Rm 10,9). Todas
as linhas do Antigo Testamento se concentram em Cristo: Ele torna-se o «sim»
definitivo a todas as promessas, fundamento último do nosso «Ámen» a Deus (cf. 2Cor 1,20). A história de Jesus é a manifestação
plena da fiabilidade de Deus. Se Israel recordava os grandes atos de amor de
Deus, que formavam o centro da sua confissão e abriam o horizonte da sua fé,
agora, a vida de Jesus aparece como o lugar da intervenção definitiva de Deus,
a suprema manifestação do seu amor por nós. A Palavra que Deus nos dirige em
Jesus já não é uma entre muitas outras, mas a sua Palavra eterna (cf. Heb 1,1-2). Não há nenhuma garantia
maior que Deus possa dar para nos certificar do seu amor, como nos lembra São
Paulo (cf. Rm 8,31-39). Portanto, a
fé cristã é fé no Amor pleno, no seu poder eficaz, na sua capacidade de
transformar o mundo e iluminar o tempo. «Nós conhecemos o amor que Deus nos
tem, pois cremos nele» (1Jo 4,16). A
fé identifica, no amor de Deus manifestado em Jesus, o fundamento sobre o qual
assenta a realidade e o seu destino último.
17.
Ora, a morte de Cristo desvenda a total fiabilidade do amor de Deus à luz da
sua ressurreição. Enquanto ressuscitado, Cristo é testemunha fiável, digna de
fé (cf. Ap 1,5; Heb 2,17), apoio firme para a nossa fé. «Se Cristo não ressuscitou,
é vã a vossa fé», afirma São Paulo (1Cor 15,17).
Se o amor do Pai não tivesse feito Jesus ressurgir dos mortos, se não tivesse
podido restituir a vida ao seu corpo, não seria um amor plenamente fiável,
capaz de iluminar também as trevas da morte. Quando São Paulo fala da sua nova
vida em Cristo, refere que a vive «na fé do Filho de Deus que me amou e a si
mesmo se entregou por mim» (Gl 2,20).
Esta «fé do Filho de Deus» é certamente a fé do Apóstolo dos gentios em Jesus,
mas supõe também a fiabilidade de Jesus, que se funda, sem dúvida, no seu amor
até à morte, mas também no facto de Ele ser Filho de Deus. Precisamente porque
é o Filho, porque está radicado de modo absoluto no Pai, Jesus pôde vencer a
morte e fazer resplandecer em plenitude a vida. A nossa cultura perdeu a noção
desta presença concreta de Deus, da sua ação no mundo; pensamos que Deus se
encontra só no além, noutro nível de realidade, separado das nossas relações
concretas. Mas, se fosse assim, isto é, se Deus fosse incapaz de agir no mundo,
o seu amor não seria verdadeiramente poderoso, verdadeiramente real e, por conseguinte,
não seria sequer verdadeiro amor, capaz de cumprir a felicidade que promete. E,
então, seria completamente indiferente crer ou não crer nele. Ao contrário, os
cristãos confessam o amor concreto e poderoso de Deus, que atua verdadeiramente
na história e determina o seu destino final; um amor que se fez passível de
encontro, que se revelou em plenitude na paixão, morte e ressurreição de Cristo.
Para
nos permitir conhecê-lo, acolhê-lo e segui-lo, o Filho de Deus assumiu a nossa
carne; e, assim, a sua visão do Pai deu-se também de forma humana, através de
um caminho e um percurso no tempo. A fé cristã é fé na encarnação do Verbo e na
sua ressurreição na carne; é fé num Deus que se fez tão próximo que entrou na
nossa história. A fé no Filho de Deus feito homem em Jesus de Nazaré não nos
separa da realidade; antes permite-nos individuar o seu significado mais
profundo, descobrir quanto Deus ama este mundo e o orienta sem cessar para si;
e isto leva o cristão a comprometer‑se, a viver de modo ainda mais intenso o
seu caminho sobre a terra.
21.
Podemos assim compreender a novidade, a que a fé nos conduz. O crente é
transformado pelo Amor, ao qual se abriu na fé; e, na sua abertura a este Amor
que lhe é oferecido, a sua existência dilata-se para além dele próprio. São
Paulo pode afirmar: «Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gl 2,20), e exortar: «Que Cristo, pela fé,
habite nos vossos corações» (Ef 3,17).
Na fé, o «eu» do crente dilata-se para ser habitado por um Outro, para viver
num Outro, e assim a sua vida amplia-se no Amor. É aqui que se situa a ação
própria do Espírito Santo: o cristão pode ter os olhos de Jesus, os seus
sentimentos, a sua predisposição filial, porque é feito participante do seu
Amor, que é o Espírito; é neste Amor que se recebe, de algum modo, a visão
própria de Jesus. Fora desta conformação no Amor, fora da presença do Espírito
que o infunde nos nossos corações (cf. Rm
5,5), é impossível confessar Jesus como Senhor (cf. 1Cor 12,3).
22.
Deste modo, a vida do fiel torna-se existência eclesial. Quando São Paulo fala
aos cristãos de Roma do único corpo que todos os crentes formam em Cristo,
exorta-os a não se vangloriarem, mas a avaliarem-se «de acordo com a medida de
fé que Deus distribuiu a cada um» (Rm 12,3).
O crente aprende a ver-se a si mesmo a partir da fé que professa. A figura de
Cristo é o espelho em que descobre realizada a sua própria imagem. E dado que
Cristo abraça em si mesmo todos os crentes que formam o seu corpo, o cristão
compreende-se a si mesmo neste corpo, em relação primordial com Cristo e os
irmãos na fé. A imagem do corpo não pretende reduzir o crente a simples parte
de um todo anónimo, a mero elemento de uma grande engrenagem; antes, sublinha a
união vital de Cristo com os crentes e de todos os crentes entre si (cf. Rm 12,4-5). Os cristãos sejam «todos um
só» (cf. Gl 3,28), sem perder a sua
individualidade, e, no serviço aos outros, cada um ganha profundamente o
próprio ser. Compreende-se assim por que motivo, fora deste corpo, desta
unidade da Igreja em Cristo – desta Igreja que, segundo as palavras de Romano
Guardini, «é a portadora histórica do olhar global de Cristo sobre o mundo»[16] –, a fé perca a sua
«medida», já não encontre o seu equilíbrio, nem o espaço necessário para se
manter de pé. A fé tem uma forma necessariamente eclesial, é professada
partindo do Corpo de Cristo, como comunhão concreta dos crentes. A partir deste
lugar eclesial, ela abre o indivíduo cristão a todos os homens. Uma vez
escutada, a palavra de Cristo, pelo seu próprio dinamismo, transforma-se em
resposta no cristão, tornando-se ela mesma palavra pronunciada, confissão de fé.
São Paulo afirma: «Realmente com o coração se crê (…) e com a boca se faz a
profissão de fé» (Rm 10,10). A fé não
é um facto privado, uma conceção individualista, uma opinião subjetiva, mas
nasce de uma escuta e destina-se a ser pronunciada e a tornar-se anúncio. Com
efeito, «como hão de acreditar naquele de quem não ouviram falar? E como hão de
ouvir falar, sem alguém que o anuncie? (Rm
10,14). Concluindo, a fé torna-se operativa no cristão, a partir do dom
recebido, a partir do Amor que o atrai para Cristo (cf. Gl 5,6) e torna participante do caminho da Igreja, peregrina na
história rumo à perfeição. Para quem foi assim transformado, abre-se um novo
modo de ver, a fé torna-se luz para os seus olhos.
Se não
acreditardes, Não compreendereis
(cf. Is 7,9)
23.
Se não acreditardes, não compreendereis (cf. Is 7,9): foi assim que a versão grega da Bíblia hebraica – a
tradução dos Setenta, feita em Alexandria do Egito – traduziu as palavras do
profeta Isaías ao rei Acaz, fazendo aparecer como central, na fé, a questão do
conhecimento da verdade. Entretanto, no texto hebraico, há uma leitura diferente;
aqui o profeta diz ao rei: «Se não o acreditardes, não subsistireis.» Existe
aqui um jogo de palavras com duas formas do verbo ‘amàn: «acreditardes» (ta’aminu)
e «subsistireis» (te’amenu).
Apavorado com a força dos seus inimigos, o rei busca a segurança que lhe pode
vir de uma aliança com o grande Império da Assíria; mas o profeta convida-o a
confiar apenas na verdadeira rocha que não vacila: o Deus de Israel. Uma vez
que Deus é fiável, é razoável ter fé nele, construir a própria segurança sobre
a sua Palavra. Este é o Deus que Isaías chamará mais adiante, por duas vezes, o
Deus-Ámen, o «Deus fiel» (cf. Is 65,16),
fundamento inabalável de fidelidade à aliança. Poder-se-ia pensar que a versão
grega da Bíblia, traduzindo «subsistir» por «compreender», tivesse realizado
uma mudança profunda do texto, passando da noção bíblica de entrega a Deus à
noção grega de compreensão. E, no entanto, esta tradução, que aceitava certamente
o diálogo com a cultura helenista, não é alheia à dinâmica profunda do texto
hebraico; a firmeza que Isaías promete ao rei passa, realmente, pela compreensão
do agir de Deus e da unidade que Ele dá à vida do homem e à história do povo. O
profeta exorta a compreender os caminhos do Senhor, encontrando na fidelidade
de Deus o plano de sabedoria que governa os séculos. Esta síntese entre o «compreender»
e o «subsistir» é expressa por Santo Agostinho, nas suas Confissões, quando fala da verdade em que se pode confiar para
conseguirmos ficar de pé: «Estarei firme e consolidar-me-ei em ti, (…) na tua
verdade»[17]. Vendo o contexto, sabemos
que este Padre da Igreja quer mostrar que esta verdade fidedigna de Deus é,
como resulta da Bíblia, a sua presença fiel ao longo da história, a sua
capacidade de manter unidos os tempos, recolhendo a dispersão dos dias do homem[18].
24.
Lido a esta luz, o texto de Isaías faz-nos concluir: o homem precisa de conhecimento,
precisa de verdade, porque sem ela não se mantém de pé, não caminha. Sem verdade,
a fé não salva, não torna seguros os nossos passos. Seria uma linda fábula, a
projeção dos nossos desejos de felicidade, algo que nos satisfaz só na medida
em que nos quisermos iludir; ou então reduzir-se-ia a um sentimento bom que
consola e afaga, mas permanece sujeito às nossas mudanças de ânimo, à variação
dos tempos, incapaz de sustentar um caminho constante na vida. Se a fé fosse
isso, então o rei Acaz teria razão para não jogar a sua vida e a segurança do
seu reino sobre uma emoção. Mas não é! Precisamente pela sua ligação intrínseca
com a verdade, a fé é capaz de oferecer uma luz nova, superior aos cálculos do
rei, porque vê mais longe, compreende o agir de Deus, que é fiel à sua aliança
e às suas promessas.
25.
Lembrar esta ligação da fé com a verdade é hoje mais necessário do que nunca,
precisamente por causa da crise de verdade em que vivemos. Na cultura contemporânea,
tende-se frequentemente a aceitar como verdade apenas a da tecnologia: é verdadeiro
aquilo que o homem consegue construir e medir com a sua ciência; é verdadeiro
porque funciona, e assim torna a vida mais cómoda e aprazível. Esta verdade
parece ser, hoje, a única certa, a única partilhável com os outros, a única
sobre a qual se pode conjuntamente discutir e comprometer-se; depois, haveria
as verdades do indivíduo, como ser autêntico face àquilo que cada um sente no
seu íntimo, válidas apenas para o sujeito mas que não podem ser propostas aos
outros com a pretensão de servir o bem comum. A verdade grande, aquela que
explica o conjunto da vida pessoal e social, é vista com suspeita. Porventura
não foi esta – perguntam-se – a verdade pretendida pelos grandes totalitarismos
do século passado, uma verdade que impunha a própria conceção global para
esmagar a história concreta do indivíduo? No fim, resta apenas um relativismo,
no qual a questão sobre a verdade de tudo – que, no fundo, é também a questão
de Deus – já não interessa. Nesta perspetiva, é lógico que se pretenda eliminar
a ligação da religião com a verdade, porque esta associação estaria na raiz do
fanatismo, que quer emudecer quem não partilha da crença própria. A este
respeito, pode-se falar de uma grande obnubilação da memória no nosso mundo
contemporâneo; de facto, a busca da verdade é uma questão de memória, de
memória profunda, porque visa algo que nos precede e, desta forma, pode
conseguir unir-nos para além do nosso «eu» pequeno e limitado; é uma questão
relativa à origem de tudo, a cuja luz se pode ver a meta e também o sentido da
estrada comum.
26.
Nesta situação, poderá a fé cristã prestar um serviço ao bem comum relativamente
à maneira correta de entender a verdade? Para termos uma resposta, é necessário
refletir sobre o tipo de conhecimento próprio da fé. Pode ajudar-nos esta frase
de Paulo: «Acredita-se com o coração» (Rm
10,10). Este, na Bíblia, é o centro do homem, onde se entrecruzam todas as
suas dimensões: o corpo e o espírito, a interioridade da pessoa e a sua
abertura ao mundo e aos outros, a inteligência, a vontade, a afetividade. O
coração pode manter unidas estas dimensões, porque é o lugar onde nos abrimos à
verdade e ao amor, deixando que nos toquem e transformem profundamente. A fé
transforma a pessoa inteira, precisamente na medida em que ela se abre ao amor;
é neste entrelaçamento da fé com o amor que se compreende a forma de conhecimento
própria da fé, a sua força de convicção, a sua capacidade de iluminar os nossos
passos. A fé conhece na medida em que está ligada ao amor, já que o próprio
amor traz uma luz. A compreensão da fé é aquela que nasce quando recebemos o
grande amor de Deus, que nos transforma interiormente e nos dá olhos novos para
ver a realidade.
27.
É conhecido o modo como o filósofo Ludwig Wittgenstein explicou a ligação entre
a fé e a certeza. Segundo ele, acreditar seria comparável à experiência do
enamoramento, concebida como algo de subjetivo, impossível de propor como
verdade válida para todos[19]. De facto, aos olhos do
homem moderno, parece que a questão do amor não teria nada a ver com a verdade;
o amor surge, hoje, como uma experiência ligada, não à verdade, mas ao mundo
inconstante dos sentimentos.
Mas,
será esta verdadeiramente uma descrição adequada do amor? Na realidade, o amor
não se pode reduzir a um sentimento que vai e vem. É verdade que o amor tem a
ver com a nossa afetividade, mas para a abrir à pessoa amada, e assim iniciar
um caminho que faz sair da reclusão no próprio eu e dirigir-se para a outra
pessoa, a fim de construir uma relação duradoura; o amor visa a união com a
pessoa amada. E aqui se manifesta em que sentido o amor tem necessidade da verdade:
apenas na medida em que o amor estiver fundado na verdade é que pode perdurar
no tempo, superar o instante efémero e permanecer firme para sustentar um
caminho comum. Se o amor não tivesse relação com a verdade, estaria sujeito à
alteração dos sentimentos e não superaria a prova do tempo. Diversamente, o
amor verdadeiro unifica todos os elementos da nossa personalidade e torna-se
uma luz nova que aponta para uma vida grande e plena. Sem a verdade, o amor não
pode oferecer um vínculo sólido, não consegue arrancar o «eu» para fora do seu
isolamento, nem libertá-lo do instante fugidio para edificar a vida e produzir
fruto.
Se
o amor tem necessidade da verdade, também a verdade precisa do amor; amor e
verdade não se podem separar. Sem o amor, a verdade torna-se fria, impessoal,
gravosa para a vida concreta da pessoa. A verdade que buscamos, a verdade que
dá significado aos nossos passos, ilumina-nos quando somos tocados pelo amor.
Quem ama, compreende que o amor é experiência da verdade, compreende que é
precisamente ele que abre os nossos olhos para verem a realidade inteira, de
maneira nova, em união com a pessoa amada. Neste sentido, escreveu São Gregório
Magno que o próprio amor é um conhecimento[20], traz consigo uma lógica
nova. Trata-se de um modo relacional de olhar o mundo, que se torna
conhecimento partilhado, visão na visão do outro e visão comum sobre todas as
coisas. Na Idade Média, Guilherme de Saint Thierry adota esta tradição, ao comentar
um versículo do Cântico dos Cânticos no qual o amado diz à amada: «Como são
lindos os teus olhos de pomba!» (Ct 1,15)[21]. Estes dois olhos –
explica Saint Thierry – são a razão crente e o amor, que se tornam um único
olhar para chegar à contemplação de Deus, quando a inteligência se faz «entendimento
de um amor iluminado»[22].
28.
Esta descoberta do amor como fonte de conhecimento, que pertence à experiência
primordial de cada homem, encontra uma expressão categorizada na conceção
bíblica da fé. Israel, saboreando o amor com que Deus o escolheu e gerou como
povo, chega a compreender a unidade do desígnio divino, desde a origem à sua
realização. O conhecimento da fé, pelo facto de nascer do amor de Deus que
estabelece a Aliança, é conhecimento que ilumina um caminho na história. É por
isso também que, na Bíblia, verdade e fidelidade caminham juntas: o Deus
verdadeiro é o Deus fiel, Aquele que mantém as suas promessas e permite, com o
decorrer do tempo, compreender o seu desígnio. Através da experiência dos
profetas, no sofrimento do exílio e na esperança de um regresso definitivo à
Cidade Santa, Israel intuiu que esta verdade de Deus se estendia mais além da
própria história, abraçando a história inteira do mundo a começar da criação. O
conhecimento da fé ilumina não só o caminho particular de um povo, mas também o
percurso inteiro do mundo criado, desde a origem até à sua consumação.
29.
Justamente porque o conhecimento da fé está ligado à aliança de um Deus fiel,
que estabelece uma relação de amor com o homem e lhe dirige a Palavra, é
apresentado pela Bíblia como escuta, aparece associado com o ouvido. São Paulo
usará uma fórmula que se tornou clássica: «fides
ex auditu» (a fé vem da escuta) (Rm 10,17). O conhecimento associado à
palavra é sempre conhecimento pessoal, que reconhece a voz, se lhe abre
livremente e a segue obedientemente. Por isso, São Paulo falou da «obediência
da fé» (cf. Rm 1,5; 16,26)[23]. Além disso, a fé é conhecimento
ligado ao transcorrer do tempo que a palavra necessita para ser explicitada: é
conhecimento que só se aprende num percurso de seguimento. A escuta ajuda a
identificar bem o nexo entre conhecimento e amor.
A
propósito do conhecimento da verdade, pretendeu-se por vezes contrapor a escuta
à visão, a qual seria peculiar da cultura grega. Se a luz, por um lado, oferece
a contemplação da totalidade a que o homem sempre aspirou, por outro, parece
não deixar espaço à liberdade, pois desce do céu e chega diretamente à vista,
sem lhe pedir que responda. Além disso, parece convidar a uma contemplação
estática, separada do tempo concreto em que o homem goza e sofre. Segundo esta
conceção, haveria oposição entre a abordagem bíblica do conhecimento e a grega,
a qual, na sua busca duma compreensão completa da realidade, teria associado o
conhecimento com a visão.
Mas
tal suposta oposição não é corroborada de forma alguma pelos dados bíblicos: o
Antigo Testamento combinou os dois tipos de conhecimento, unindo a escuta da
Palavra de Deus com o desejo de ver o seu rosto. Isto tornou possível entabular
diálogo com a cultura helenista, um diálogo que pertence ao coração da
Escritura. O ouvido atesta não só a chamada pessoal e a obediência, mas também
que a verdade se revela no tempo; a vista, por sua vez, oferece a visão plena
de todo o percurso, permitindo situar-nos no grande projeto de Deus; sem tal
visão, disporíamos apenas de fragmentos isolados de um todo desconhecido.
Como
se chega a esta síntese entre o ouvir e o ver? A partir da pessoa concreta de
Jesus, que se vê e escuta. Ele é a Palavra que se fez carne e cuja glória contemplámos
(cf. Jo 1,14). A luz da fé é a luz de
um Rosto, no qual se vê o Pai. De facto, no quarto Evangelho, a verdade que a
fé apreende é a manifestação do Pai no Filho, na sua carne e nas suas obras
terrenas; verdade essa, que se pode definir como a «vida luminosa» de Jesus[24]. Isto significa que o
conhecimento da fé não nos convida a olhar uma verdade puramente interior; a
verdade que a fé nos descerra é uma verdade centrada no encontro com Cristo, na
contemplação da sua vida, na perceção da sua presença. Neste sentido e a
propósito da visão corpórea do Ressuscitado, São Tomás de Aquino fala de oculata fides (uma fé que vê) dos
Apóstolos[25]: viram Jesus ressuscitado
com os seus olhos e acreditaram, isto é, puderam penetrar na profundidade
daquilo que viam para confessar o Filho de Deus, sentado à direita do Pai.
31.
Só assim, através da encarnação, através da partilha da nossa humanidade, podia
chegar à plenitude o conhecimento próprio do amor. De facto, a luz do amor nasce
quando somos tocados no coração, recebendo assim, em nós, a presença interior
do amado, que nos permite reconhecer o seu mistério. Compreendemos agora por
que motivo, para João, a fé seja, juntamente com o escutar e o ver, um tocar,
como nos diz na sua Primeira Carta: «O que ouvimos, o que vimos (…) e as nossas
mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida…» (1Jo 1,1). Por meio da sua encarnação, com a sua vinda entre nós,
Jesus tocou-nos e, através dos sacramentos, ainda hoje nos toca; desta forma,
transformando o nosso coração, permitiu-nos – e permite-nos – reconhecê-lo e confessá-lo
como Filho de Deus. Pela fé, podemos tocá-lo e receber a força da sua graça.
Santo Agostinho, comentando a passagem da hemorroíssa que toca Jesus para ser
curada (cf. Lc 8,45-46), afirma:
«Tocar com o coração, isto é crer»[26]. A multidão comprime-se ao
redor de Jesus, mas não o alcança com aquele toque pessoal da fé que reconhece
o seu mistério, o seu ser Filho que manifesta o Pai. Só quando somos
configurados com Jesus é que recebemos o olhar adequado para o ver.
33.
Na vida de Santo Agostinho, encontramos um exemplo significativo deste caminho:
a busca da razão, com o seu desejo de verdade e clareza, aparece integrada no
horizonte da fé, do qual recebeu uma nova compreensão. Por um lado, acolhe a
filosofia grega da luz com a sua insistência na visão: o seu encontro com o
neoplatonismo fez-lhe conhecer o paradigma da luz, que desce do alto para iluminar
as coisas, tornando-se assim um símbolo de Deus. Desta maneira, Santo Agostinho
compreendeu a transcendência divina e descobriu que todas as coisas possuem em
si uma transparência, isto é, que podiam refletir a bondade de Deus, o Bem;
assim se libertou do maniqueísmo, em que antes vivia, que o inclinava a pensar
que o bem e o mal lutassem continuamente entre si, confundindo-se e
misturando-se, sem contornos claros. O facto de ter compreendido que Deus é luz
deu à sua existência uma nova orientação, a capacidade de reconhecer o mal de
que era culpado e voltar-se para o bem.
Mas,
por outro lado, na experiência concreta de Agostinho, que ele próprio narra nas
suas Confissões, o momento decisivo
no seu caminho de fé não foi uma visão de Deus para além deste mundo, mas a
escuta, quando no jardim ouviu uma voz que lhe dizia: «Toma e lê»; ele pegou no
tomo com as Cartas de São Paulo, detendo-se no capítulo décimo terceiro da
Carta aos Romanos[28]. Temos aqui o Deus pessoal
da Bíblia, capaz de falar ao homem, descer para viver com ele e acompanhar o
seu caminho na história, manifestando-se no tempo da escuta e da resposta.
Mas,
este encontro com o Deus da Palavra não levou Santo Agostinho a rejeitar a luz
e a visão, mas integrou ambas as perspetivas, guiado sempre pela revelação do
amor de Deus em Jesus.
Deste modo, elaborou uma filosofia da luz que reúne em si a
reciprocidade própria da palavra e abre um espaço à liberdade própria do olhar
para a luz: tal como à palavra corresponde uma resposta livre, assim também a
luz encontra como resposta uma imagem que a reflete. Deste modo, associando
escuta e visão, Santo Agostinho pôde referir-se à «palavra que resplandece no
interior do homem»[29]. A luz torna-se, por assim
dizer, a luz de uma palavra, porque é a luz de um Rosto pessoal, uma luz que,
ao iluminar-nos, nos chama e quer refletir-se no nosso rosto para resplandecer
a partir do nosso íntimo. Por outro lado, o desejo da visão do todo, e não
apenas dos fragmentos da história, continua presente e cumprir-se-á no fim,
quando o homem – como diz o Santo de Hipona – poderá ver e amar[30]; e isto, não por ser capaz
de possuir a luz toda, já que esta será sempre inexaurível, mas por entrar,
todo inteiro, na luz.
Por
outro lado, enquanto unida à verdade do amor, a luz da fé não é alheia ao mundo
material, porque o amor vive-se sempre com corpo e alma; a luz da fé é luz
encarnada, que dimana da vida luminosa de Jesus. A fé ilumina também a matéria,
confia na sua ordem, sabe que nela se abre um caminho cada vez mais amplo de
harmonia e compreensão. Deste modo, o olhar da ciência tira benefício da fé:
esta convida o cientista a permanecer aberto à realidade, em toda a sua riqueza
inesgotável. A fé desperta o sentido crítico, enquanto impede a pesquisa de se
deter, satisfeita, nas suas fórmulas e ajuda-a a compreender que a natureza
sempre as ultrapassa. Convidando a maravilhar-se diante do mistério da criação,
a fé alarga os horizontes da razão para iluminar melhor o mundo que se abre aos
estudos da ciência.
Imagem
desta busca, são os Magos, guiados pela estrela até Belém (cf. Mt 2,1-12). A luz de Deus
mostrou-se-lhes como caminho, como estrela que os guia ao longo duma estrada a
descobrir. Deste modo, a estrela fala da paciência de Deus com os nossos olhos,
que devem habituar-se ao seu fulgor. Encontrando-se a caminho, o homem
religioso deve estar pronto a deixar-se guiar, a sair de si mesmo para
encontrar o Deus que não cessa de nos surpreender. Este respeito de Deus pelos
olhos do homem mostra-nos que, quando o homem se aproxima dele, a luz humana
não se dissolve na imensidão luminosa de Deus, como se fosse um estrela
absorvida pela aurora, mas torna-se tanto mais brilhante quanto mais perto fica
do fogo gerador, como um espelho que reflete o resplendor. A confissão de
Jesus, único Salvador, afirma que toda a luz de Deus se concentrou nele, na sua
«vida luminosa», em que se revela a origem e a consumação da história[31]. Não há nenhuma
experiência humana, nenhum itinerário do homem para Deus que não possa ser
acolhido, iluminado e purificado por esta luz. Quanto mais o cristão penetrar
no círculo aberto pela luz de Cristo, tanto mais será capaz de compreender e
acompanhar o caminho de cada homem para Deus.
Configurando-se
como caminho, a fé tem a ver também com a vida dos homens que, apesar de não
acreditarem, desejam-no fazer e não cessam de procurar. Na medida em que se
abrem, de coração sincero, ao amor e se põem a caminho com a luz que conseguem
captar, já vivem – sem o saber – no caminho para a fé: procuram agir como se
Deus existisse, seja porque reconhecem a sua importância para encontrar
diretrizes firmes na vida comum, seja porque sentem o desejo de luz no meio da
escuridão, seja ainda porque, notando como é grande e bela a vida, intuem que a
presença de Deus ainda a tornaria maior. Santo Ireneu de Lião refere que
Abraão, antes de ouvir a voz de Deus, já o procurava «com o desejo ardente do
seu coração» e «percorria todo o mundo, perguntando-se onde pudesse estar
Deus», até que «Deus teve piedade daquele que, sozinho, o procurava no
silêncio»[32]. Quem se põe a caminho
para praticar o bem, já se aproxima de Deus, já está sustentado pela sua ajuda,
porque é próprio da dinâmica da luz divina iluminar os nossos olhos, quando
caminhamos para a plenitude do amor.
36.
Como luz que é, a fé convida-nos a penetrar nela, a explorar sempre mais o horizonte
que ilumina, para conhecer melhor o que amamos. Deste desejo nasce a teologia
cristã; assim, é claro que a teologia é impossível sem a fé e pertence ao
próprio movimento da fé, que procura a compreensão mais profunda da
autorrevelação de Deus, culminada no Mistério de Cristo. A primeira consequência
é que, na teologia, não se verifica apenas um esforço da razão para perscrutar
e conhecer, como nas ciências experimentais. Deus não pode ser reduzido a
objeto; Ele é Sujeito que se dá a conhecer e manifesta na relação pessoa a pessoa.
A fé reta orienta a razão para se abrir à luz que vem de Deus, a fim de que
ela, guiada pelo amor à verdade, possa conhecer Deus de forma mais profunda. Os
grandes doutores e teólogos medievais declararam que a teologia, enquanto
ciência da fé, é uma participação no conhecimento que Deus tem de si mesmo. Por
isso, a teologia não é apenas palavra sobre Deus, mas, antes de tudo, acolhimento
e busca de uma compreensão mais profunda da Palavra que Deus nos dirige: Palavra
que Deus pronuncia sobre si mesmo, porque é um diálogo eterno de comunhão, no
âmbito do qual é admitido o homem[33]. Assim, é própria da
teologia a humildade, que se deixa «tocar» por Deus, reconhece os seus limites
face ao Mistério e se encoraja a explorar, com a disciplina própria da razão,
as riquezas insondáveis deste Mistério.
Além
disso, a teologia partilha a forma eclesial da fé; a sua luz é a luz do sujeito
crente que é a Igreja. Isto implica, por um lado, que a teologia esteja ao
serviço da fé dos cristãos, vise humildemente preservar e aprofundar o crer de
todos, sobretudo dos mais simples; e por outro, dado que vive da fé, a teologia
não considera o magistério do Papa e dos Bispos em comunhão com ele como algo
de extrínseco, um limite à sua liberdade, mas, pelo contrário, como um dos seus
momentos internos constitutivos, enquanto o magistério assegura o contacto com
a fonte originária, oferecendo assim a certeza de beber na Palavra de Cristo em
toda a sua integridade.
Transmito-vos
aquilo que recebi
(cf. 1Cor 15,3)
37.
Quem se abriu ao amor de Deus, acolheu a sua voz e recebeu a sua luz, não pode
guardar este dom para si mesmo. Uma vez que é escuta e visão, a fé transmite-se
também como palavra e como luz; dirigindo-se aos Coríntios, o apóstolo Paulo
utiliza precisamente estas duas imagens. Por um lado, diz: «Animados do mesmo
espírito de fé, conforme o que está escrito: Acreditei e por isso falei, também
nós acreditamos e por isso falamos» (2Cor
4,13); a palavra recebida faz-se resposta, confissão, e assim ecoa para os
outros, convidando-os a crer. Por outro, São Paulo refere-se também à luz: «E
nós todos que, com o rosto descoberto, refletimos a glória do Senhor, somos
transfigurados na sua própria imagem» (2Cor
3,18); é uma luz que se reflete de rosto em rosto, como sucedeu com Moisés
cujo rosto refletia a glória de Deus depois de ter falado com Ele: «[Deus]
brilhou nos nossos corações, para irradiar o conhecimento da glória de Deus,
que resplandece na face de Cristo» (2Cor 4,6).
A luz de Jesus brilha no rosto dos cristãos como num espelho, e assim se
difunde chegando até nós, para que também nós possamos participar desta visão e
refletir para outros a sua luz, da mesma forma que a luz do círio, na liturgia
de Páscoa, acende muitas outras velas. A fé transmite-se por assim dizer sob a
forma de contacto, de pessoa a pessoa, como uma chama se acende noutra chama.
Os cristãos, na sua pobreza, lançam uma semente tão fecunda que se torna uma
grande árvore, capaz de encher o mundo de frutos.
39.
É impossível crer sozinhos. A fé não é só uma opção individual que se realiza
na interioridade do crente, não é uma relação isolada entre o «eu» do fiel e o
«Tu» divino, entre o sujeito autónomo e Deus; mas, por sua natureza, abre-se ao
«nós», verifica-se sempre dentro da comunhão da Igreja. Assim no-lo recorda a
forma dialogada do Credo, que se usa na liturgia batismal. O crer exprime-se
como resposta a um convite, a uma palavra que não provém de mim, mas deve ser
escutada; por isso, insere-se no interior de um diálogo, não pode ser uma mera
confissão que nasce do indivíduo: só é possível responder «creio», na primeira
pessoa, porque se pertence a uma comunhão grande, dizendo também «cremos». Esta
abertura ao «nós» eclesial realiza-se de acordo com a abertura própria do amor
de Deus, que não é apenas relação entre o Pai e o Filho, entre «eu» e «tu»,
mas, no Espírito, é também um «nós», uma comunhão de pessoas. Por isso mesmo,
quem crê nunca está sozinho; e, pela mesma razão, a fé tende a difundir-se, a
convidar outros para a sua alegria. Quem recebe a fé, descobre que os espaços
do próprio «eu» se alargam, gerando-se nele novas relações que enriquecem a
vida. Assim o exprimiu vigorosamente Tertuliano ao dizer do catecúmeno que,
tendo sido recebido numa nova família «depois do banho do novo nascimento», é
acolhido na casa da Mãe para erguer as mãos e rezar, juntamente com os irmãos,
o Pai Nosso[34].
40.
Como sucede em cada família, a Igreja transmite aos seus filhos o conteúdo da
sua memória. Como se deve fazer esta transmissão de modo que nada se perca, mas
antes que tudo se aprofunde cada vez mais na herança da fé? É através da
Tradição Apostólica, conservada na Igreja com a assistência do Espírito Santo,
que temos contacto vivo com a memória fundadora. E aquilo que foi transmitido
pelos Apóstolos, como afirma o Concílio Ecuménico Vaticano II, «abrange tudo
quanto contribui para a vida santa do Povo de Deus e para o aumento da sua fé;
e assim a Igreja, na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas
as gerações tudo aquilo que ela é e tudo quanto acredita»[35].
De
facto, a fé tem necessidade de um âmbito onde se possa testemunhar e comunicar,
e que o mesmo seja adequado e proporcionado ao que se comunica. Para transmitir
um conteúdo meramente doutrinal, uma ideia, talvez bastasse um livro ou a
repetição de uma mensagem oral; mas aquilo que se comunica na Igreja, o que se
transmite na sua Tradição viva é a luz nova que nasce do encontro com o Deus
vivo, uma luz que toca a pessoa no seu íntimo, no coração, envolvendo a sua
mente, vontade e afetividade, abrindo-a a relações vivas na comunhão com Deus e
com os outros. Para se transmitir tal plenitude, existe um meio especial que
põe em jogo a pessoa inteira: corpo e espírito, interioridade e relações. Este
meio são os sacramentos celebrados na liturgia da Igreja: neles se comunica uma
memória encarnada, ligada aos lugares e épocas da vida, associada com todos os
sentidos; neles, a pessoa é envolvida, como membro de um sujeito vivo, num tecido
de relações comunitárias. Por isso, se é verdade que os sacramentos são os
sacramentos da fé[36], há que afirmar também que
a fé tem uma estrutura sacramental; o despertar da fé passa pelo despertar de
um novo sentido sacramental na vida do homem e na existência cristã, mostrando
como o visível e o material se abrem para o mistério do eterno.
42.
Quais são os elementos batismais que nos introduzem nesta nova «forma de
ensino»? Sobre o catecúmeno é invocado, em primeiro lugar, o nome da Trindade:
Pai, Filho e Espírito Santo. E deste modo se oferece, logo desde o princípio,
uma síntese do caminho da fé: o Deus que chamou Abraão e quis chamar-se seu
Deus, o Deus que revelou o seu nome a Moisés, o Deus que, ao entregar-nos o seu
Filho, nos revelou plenamente o mistério do seu Nome, dá à pessoa batizada uma
nova identidade filial. Desta forma, se evidencia o sentido da imersão na água
que se realiza no Batismo: a água é, simultaneamente, símbolo de morte, que nos
convida a passar pela conversão do «eu» tendo em vista a sua abertura a um «Eu»
maior, e símbolo de vida, do ventre onde renascemos para seguir Cristo na sua
nova existência. Deste modo, através da imersão na água, o Batismo fala-nos da
estrutura encarnada da fé. A ação de Cristo toca-nos na nossa realidade
pessoal, transformando-nos radicalmente, tornando-nos filhos adotivos de Deus,
participantes da natureza divina; e assim modifica todas as nossas relações, a
nossa situação concreta na terra e no universo, abrindo-as à própria vida de
comunhão dele. Este dinamismo de transformação próprio do Batismo ajuda-nos a
perceber a importância do catecumenato, que hoje – mesmo em sociedades de
antigas raízes cristãs, onde um número crescente de adultos se aproxima do
sacramento batismal – se reveste de singular relevância para a nova
evangelização. É o itinerário de preparação para o Batismo, para a
transformação da vida inteira em Cristo.
Para
compreender a ligação entre o Batismo e a fé, pode ajudar-nos a recordação de
um texto do profeta Isaías, que já aparece associado com o Batismo na literatura
cristã antiga: «Terá o seu refúgio em rochas elevadas, terá (…) água em
abundância» (Is 33,16)[37]. Resgatado da morte pela
água, o batizado pode manter-se de pé sobre «rochas elevadas», porque encontrou
a solidez à qual confiar-se; e, assim, a água de morte transformou-se em água
de vida. O texto grego descrevia-a como água pistòs, água «fiel»: a água do Batismo é fiel, podendo confiar-nos
a ela porque a sua corrente entra na dinâmica de amor de Jesus, fonte de
segurança para o nosso caminho na vida.
45.
Na celebração dos sacramentos, a Igreja transmite a sua memória, particularmente
com a profissão de fé. Nesta, não se trata tanto de prestar assentimento a um
conjunto de verdades abstratas, como sobretudo fazer a vida toda entrar na
comunhão plena com o Deus Vivo. Podemos dizer que, no Credo, o fiel é convidado a entrar no mistério que professa e a
deixar-se transformar por aquilo que confessa. Para compreender o sentido desta
afirmação, pensemos em primeiro lugar no conteúdo do Credo. Este tem uma estrutura trinitária: o Pai e o Filho unem-se
no Espírito de amor. Deste modo o crente afirma que o centro do ser, o segredo
mais profundo de todas as coisas é a comunhão divina. Além disso, o Credo contém uma confissão cristológica:
repassam-se os mistérios da vida de Jesus até à sua morte, ressurreição e
ascensão ao Céu, na esperança da sua vinda final na glória. E,
consequentemente, afirma-se que este Deus-comunhão, permuta de amor entre o Pai
e o Filho no Espírito, é capaz de abraçar a história do homem, de introduzi-lo
no seu dinamismo de comunhão, que tem, no Pai, a sua origem e meta final.
Aquele que confessa a fé sente-se implicado na verdade que confessa; não pode
pronunciar, com verdade, as palavras do Credo,
sem ser por isso mesmo transformado, sem mergulhar na história de amor que o
abraça, que dilata o seu ser tornando-o parte de uma grande comunhão, do
sujeito último que pronuncia o Credo:
a Igreja. Todas as verdades, em que cremos, afirmam o mistério da vida nova da
fé como caminho de comunhão com o Deus Vivo.
46.
Há mais dois elementos que são essenciais na transmissão fiel da memória da
Igreja. O primeiro é a Oração do Senhor, o Pai-Nosso;
nela, o cristão aprende a partilhar a própria experiência espiritual de Cristo
e começa a ver com os olhos dele. A partir daquele que é Luz da Luz, do Filho
Unigénito do Pai, também nós conhecemos a Deus e podemos inflamar outros no
desejo de se aproximarem dele.
Igualmente
importante é ainda a ligação entre a fé e o Decálogo. Dissemos já que a fé se
apresenta como um caminho, uma estrada a percorrer, aberta pelo encontro com o
Deus vivo; por isso, à luz da fé, da entrega total ao Deus que salva, o
Decálogo adquire a sua verdade mais profunda, contida nas palavras que introduzem
os Dez Mandamentos: «Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do
Egito» (Ex 20,2). O Decálogo não é um
conjunto de preceitos negativos, mas de indicações concretas para sair do
deserto do «eu» autorreferencial, fechado em si mesmo, e entrar em diálogo com
Deus, deixando-se abraçar pela sua misericórdia a fim de a irradiar. Deste
modo, a fé confessa o amor de Deus, origem e sustentáculo de tudo, deixa-se
mover por este amor para caminhar rumo à plenitude da comunhão com Deus. O Decálogo
aparece como o caminho da gratidão, da resposta de amor, que é possível porque,
na fé, nos abrimos à experiência do amor de Deus que nos transforma. E este
caminho recebe uma luz nova de tudo aquilo que Jesus ensina no Sermão da Montanha
(cf. Mt 5‑7).
Toquei assim os quatro elementos que resumem o tesouro
de memória que a Igreja transmite: a confissão de fé, a celebração dos
sacramentos, o caminho do Decálogo, a oração. À volta deles se estruturou
tradicionalmente a catequese da Igreja, como se pode ver no Catecismo da Igreja Católica, instrumento
fundamental para aquele ato com que a Igreja comunica o conteúdo inteiro da fé,
«tudo aquilo que ela é e tudo quanto acredita»[39].
Qual
é o segredo desta unidade? A fé é una, em primeiro lugar, pela unidade de Deus
conhecido e confessado. Todos os artigos de fé se referem a Ele, são caminhos
para conhecer o seu ser e o seu agir; por isso, possuem uma unidade superior a
tudo quanto possamos construir com o nosso pensamento, possuem a unidade que
nos enriquece, porque se comunica a nós e nos torna um.
Depois,
a fé é una, porque se dirige ao único Senhor, à vida de Jesus, à história concreta
que Ele partilha connosco. Santo Ireneu de Lião deixou isto claro, contrapondo-o
aos hereges gnósticos. Estes sustentavam a existência de dois tipos de fé: uma
fé rude, a fé dos simples, imperfeita, que se mantinha ao nível da carne de
Cristo e da contemplação dos seus mistérios; e outro tipo de fé mais profunda e
perfeita, a fé verdadeira, reservada para um círculo restrito de iniciados, que
se elevava com o intelecto para além da carne de Jesus, rumo aos mistérios da
divindade desconhecida. Contra esta pretensão, que ainda em nossos dias
continua a ter o seu encanto e os seus seguidores, Santo Ireneu reafirma que a
fé é uma só, porque passa sempre pelo ponto concreto da encarnação, sem nunca
superar a carne e a história de Cristo, dado que Deus se quis revelar plenamente
nela. É por isso que não há diferença, na fé, entre «aquele que é capaz de
falar dela mais tempo» e «aquele que fala pouco», entre aquele que é mais
dotado e quem se mostra menos capaz: nem o primeiro pode ampliar a fé, nem o
segundo diminuí-la[41].
Por
último, a fé é una, porque é partilhada por toda a Igreja, que é um só Corpo e
um só Espírito: na comunhão do único sujeito que é a Igreja, recebemos um olhar
comum. Confessando a mesma fé, apoiamo-nos sobre a mesma rocha, somos transformados
pelo mesmo Espírito de amor, irradiamos uma única luz e temos um único olhar
para penetrar na realidade.
48.
Dado que a fé é uma só, deve-se confessar em toda a sua pureza e integridade.
Precisamente porque todos os artigos da fé estão unitariamente ligados; negar
um deles – mesmo dos que possam parecer menos importantes – equivale a
danificar o todo. Cada época pode encontrar pontos da fé mais fáceis ou mais
difíceis de aceitar; por isso, é importante vigiar para que se transmita todo o
depósito da fé (cf. 1Tm 6,20) e para
que se insista oportunamente sobre todos os aspetos da confissão de fé. De
facto, visto que a unidade da fé é a unidade da Igreja, tirar algo à fé é
fazê-lo à verdade da comunhão. Os Padres descreveram a fé como um corpo, o
corpo da verdade, com diversos membros, analogamente ao que se passa no Corpo
de Cristo com o seu prolongamento na Igreja[42].
A
integridade da fé foi associada também com a imagem da Igreja virgem, com o seu
amor esponsal fiel a Cristo: danificar a fé significa danificar a comunhão com
o Senhor[43].
A unidade da fé é, por conseguinte, a de um organismo vivo, como bem evidenciou
o Beato John Henry Newman, quando enumera, entre as notas características para
distinguir a continuidade da doutrina no tempo, o seu poder de assimilar em si
tudo o que encontra, nos diversos âmbitos em que se torna presente, nas
diversas culturas que encontra[44],
tudo purificando e levando à sua melhor expressão. É assim que a fé se mostra
universal, católica, porque a sua luz cresce para iluminar todo o universo,
toda a história.
49.
Como serviço à unidade da fé e à sua transmissão íntegra, o Senhor deu à Igreja
o dom da sucessão apostólica. Por seu intermédio, fica garantida a continuidade
da memória da Igreja, e é possível beber, com certeza, na fonte pura donde
surge a fé; assim, a garantia da ligação com a origem é‑nos dada por pessoas
vivas, o que equivale à fé viva que a Igreja transmite. Esta fé viva assenta
sobre a fidelidade das testemunhas que foram escolhidas pelo Senhor para tal
tarefa; por isso, o magistério fala sempre em obediência à Palavra originária,
sobre a qual se baseia a fé, e é fiável porque se entrega à Palavra que escuta,
guarda e expõe[45].
No discurso de despedida aos anciãos de Éfeso, em Mileto, referido por São
Lucas, nos Atos dos Apóstolos, São Paulo atesta que cumpriu o encargo, que lhe
foi confiado pelo Senhor, de lhes anunciar toda a vontade de Deus (cf. At 20,27); é graças ao magistério da
Igreja que nos pode chegar, íntegra, esta vontade e, com ela, a alegria de a
podermos cumprir plenamente.
Deus
prepara para eles uma cidade
(cf. Heb 11,16)
50.
Ao apresentar a história dos patriarcas e dos justos do Antigo Testamento, a
Carta aos Hebreus põe em relevo um aspeto essencial da sua fé; esta não se apresenta
apenas como um caminho, mas também como edificação, preparação de um lugar onde
os homens possam habitar uns com os outros. O primeiro construtor é Noé, que,
na arca, consegue salvar a sua família (cf. Heb
11,7). Depois, aparece Abraão, de quem se diz que, pela fé, habitara em
tendas, esperando a cidade de alicerces firmes (cf. Heb 11,9-10). Vemos assim surgir, relacionada com a fé, uma nova
fiabilidade, uma nova solidez, que só Deus pode dar. Se o homem de fé assenta
sobre o Deus-Ámen, o Deus fiel (cf. Is 65,16),
tornando-se assim firme ele mesmo, podemos acrescentar que a firmeza da fé se
refere também à cidade que Deus está a preparar para o homem. A fé revela quão
firmes podem ser os vínculos entre os homens, quando Deus se torna presente no
meio deles. Não evoca apenas uma solidez interior, uma convicção firme do
crente; a fé ilumina também as relações entre os homens, porque nasce do amor e
segue a dinâmica do amor de Deus. O Deus fiável dá aos homens uma cidade
fiável.
51.
Devido precisamente à sua ligação com o amor (cf. Gl 5,6), a luz da fé coloca-se ao serviço concreto da justiça, do
direito e da paz. A fé nasce do encontro com o amor gerador de Deus que mostra
o sentido e a bondade da nossa vida; esta é iluminada na medida em que entra no
dinamismo aberto por este amor, isto é, enquanto se torna caminho e exercício
para a plenitude do amor. A luz da fé é capaz de valorizar a riqueza das
relações humanas, a sua capacidade de perdurarem, serem fiáveis, enriquecerem a
vida comum. A fé não afasta do mundo, nem é alheia ao esforço concreto dos
nossos contemporâneos. Sem um amor fiável, nada poderia manter verdadeiramente
unidos os homens: a unidade entre eles seria concebível apenas enquanto fundada
sobre a utilidade, a conjugação dos interesses, o medo, mas não sobre a beleza
de viverem juntos, nem sobre a alegria que a simples presença do outro pode
gerar. A fé faz compreender a arquitetura das relações humanas, porque identifica
o seu fundamento último e destino definitivo em Deus, no seu amor, e assim
ilumina a arte da sua construção, tornando-se um serviço ao bem comum. Por
isso, a fé é um bem para todos, um bem comum: a sua luz não ilumina apenas o
âmbito da Igreja nem serve somente para construir uma cidade eterna no além,
mas ajuda também a construir as nossas sociedades de modo que caminhem para um
futuro de esperança. A Carta aos Hebreus oferece um exemplo disto mesmo, ao
nomear, entre os homens de fé, Samuel e David, a quem a fé permitiu «exercerem
a justiça» (11,33). A expressão refere-se aqui à sua justiça no governar,
àquela sabedoria que traz a paz ao povo (cf. 1Sm 12,3-5; 2Sm 8,15). As
mãos da fé levantam-se para o Céu, mas fazem-no ao mesmo tempo que edificam, na
caridade, uma cidade construída sobre relações que têm como alicerce o amor de
Deus.
52.
No caminho de Abraão para a cidade futura, a Carta aos Hebreus alude à bênção
que se transmite dos pais aos filhos (cf. 11,20-21). O primeiro âmbito da
cidade dos homens iluminado pela fé é a família; penso, antes de mais nada, na
união estável do homem e da mulher no matrimónio. Tal união nasce do seu amor,
sinal e presença do amor de Deus, nasce do reconhecimento e aceitação do bem
que é a diferença sexual, em virtude da qual os cônjuges se podem unir numa só
carne (cf. Gn 2,24) e são capazes de
gerar uma nova vida, manifestação da bondade do Criador, da sua sabedoria e do
seu desígnio de amor. Fundados sobre este amor, homem e mulher podem
prometer-se amor mútuo com um gesto que compromete a vida inteira e que lembra
muitos traços da fé: prometer um amor que dure para sempre é possível quando se
descobre um desígnio maior que os próprios projetos, que nos sustenta e permite
doar o futuro inteiro à pessoa amada. Depois, a fé pode ajudar a individuar, em
toda a sua profundidade e riqueza, a geração dos filhos, porque faz reconhecer
nela o amor criador que nos dá e nos entrega o mistério de uma nova pessoa; foi
assim que Sara, pela sua fé, se tornou mãe, apoiando-se na fidelidade de Deus à
sua promessa (cf. Heb 11,11).
53.
Em família, a fé acompanha todas as idades da vida, a começar pela infância: as
crianças aprendem a confiar no amor de seus pais. Por isso, é importante que os
pais cultivem práticas de fé comuns na família, que acompanhem o amadurecimento
da fé dos filhos. Sobretudo os jovens, que atravessam uma idade da vida tão
complexa, rica e importante para a fé, devem sentir a proximidade e a atenção
da família e da comunidade eclesial no seu caminho de crescimento da fé. Todos
vimos como, nas Jornadas Mundiais da Juventude, os jovens mostram a alegria da
fé, o compromisso de viver uma fé cada vez mais sólida e generosa. Os jovens
têm o desejo de uma vida grande; o encontro com Cristo, o deixar-se conquistar
e guiar pelo seu amor alarga o horizonte da existência, dá-lhe uma esperança
firme que não desilude. A fé não é um refúgio para gente sem coragem, mas a
dilatação da vida: faz descobrir um grande chamamento – a vocação ao amor – e
assegura que este amor é fiável, que vale a pena entregar-se a ele, porque o
seu fundamento se encontra na fidelidade de Deus, que é mais forte do que toda
a nossa fragilidade.
54.
Assimilada e aprofundada em família, a fé torna-se luz para iluminar todas as
relações sociais. Como experiência da paternidade e da misericórdia de Deus,
dilata-se depois em caminho fraterno. Na Idade Moderna, procurou-se construir a
fraternidade universal entre os homens, baseando-se na sua igualdade; mas,
pouco a pouco, fomos compreendendo que esta fraternidade, privada do
referimento a um Pai comum como seu fundamento último, não consegue subsistir;
por isso, é necessário voltar à verdadeira raiz da fraternidade. Desde o seu
início, a história de fé foi uma história de fraternidade, embora não
desprovida de conflitos. Deus chama Abraão para sair da sua terra, prometendo
fazer dele uma única e grande nação, um grande povo, sobre o qual repousa a
Bênção divina (cf. Gn 12,1-3). À
medida que a história da salvação avança, o homem descobre que Deus quer fazer
a todos participar como irmãos da única bênção, que encontra a sua plenitude em
Jesus, para que todos se tornem um só. O amor inexaurível do Pai é-nos
comunicado em Jesus, também através da presença do irmão. A fé ensina-nos a ver
que, em cada homem, há uma bênção para mim, que a luz do rosto de Deus me
ilumina através do rosto do irmão.
Quantos
benefícios trouxe o olhar da fé cristã à cidade dos homens para a sua vida em
comum! Graças à fé, compreendemos a dignidade única de cada pessoa, que não era
tão evidente no mundo antigo. No século II, o pagão Celso censurava os cristãos
por algo que lhe parecia uma ilusão e um engano: pensar que Deus tivesse criado
o mundo para o homem, colocando-o no vértice do universo inteiro. «Porquê
pretender que [a verdura] cresça para os homens, em vez de crescer para os mais
selvagens dos animais sem razão?»[46].
«Se olhássemos a terra do alto do céu, que diferença se nos ofereceria entre as
nossas atividades e as das formigas e das abelhas?»[47].
No
centro da fé bíblica, há o amor de Deus, o seu cuidado concreto por cada pessoa,
o seu desejo de salvação que abraça toda a humanidade e a criação inteira e que
atinge o clímax na encarnação, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Quando se
obscurece esta realidade, falta o critério para individuar o que torna preciosa
e única a vida do homem; e este perde o seu lugar no universo, extravia-se na
natureza, renunciando à própria responsabilidade moral, ou então pretende ser
árbitro absoluto, arrogando-se um poder de manipulação sem limites.
55.
Além disso a fé, ao revelar-nos o amor de Deus Criador, faz-nos olhar com maior
respeito para a natureza, fazendo-nos reconhecer nela uma gramática escrita por
Ele e uma habitação que nos foi confiada para ser cultivada e guardada;
ajuda-nos a encontrar modelos de progresso, que não se baseiem apenas na
utilidade e no lucro mas considerem a criação como dom, de que todos somos
devedores; ensina-nos a individuar formas justas de governo, reconhecendo que a
autoridade vem de Deus para estar ao serviço do bem comum. A fé afirma também a
possibilidade do perdão, que muitas vezes requer tempo, canseira, paciência e
empenho; um perdão possível quando se descobre que o bem é sempre mais
originário e mais forte que o mal, que a palavra com que Deus afirma a nossa
vida é mais profunda do que todas as nossas negações. Aliás, mesmo dum ponto de
vista simplesmente antropológico, a unidade é superior ao conflito; devemos
preocupar-nos também com o conflito, mas vivendo-o de tal modo que nos leve a
resolvê-lo, a superá-lo, como elo duma cadeia, num avanço para a unidade.
Quando
a fé esmorece, há o risco de esmorecerem também os fundamentos do viver, como advertia
o poeta Thomas Sterls Eliot: «Precisais porventura que se vos diga que até
aqueles modestos sucessos / que vos permitem ser orgulhosos de uma sociedade
educada / dificilmente sobreviveriam à fé, a que devem o seu significado?»[48].
Se tiramos a fé em Deus das nossas cidades, enfraquecer-se-á a confiança entre
nós, apenas o medo nos manterá unidos, e a estabilidade ficará ameaçada. Afirma
a Carta aos Hebreus: «Deus não se envergonha de ser chamado o “seu Deus”,
porque preparou para eles uma cidade» (11,16). A expressão «não se envergonha»
tem conotado um reconhecimento público: pretende-se afirmar que Deus, com o seu
agir concreto, confessa publicamente a sua presença entre nós, o seu desejo de
tornar firmes as relações entre os homens. Porventura vamos ser nós a
envergonhar-nos de chamar a Deus «o nosso Deus»? Seremos por acaso nós a
recusar-nos a confessá-lo como tal na nossa vida pública, a propor a grandeza
da vida comum que Ele torna possível? A fé ilumina a vida social: possui uma
luz criadora para cada momento novo da história, porque coloca todos os
acontecimentos em relação com a origem e o destino de tudo no Pai que nos ama.
56.
São Paulo, falando aos cristãos de Corinto das suas tribulações e sofrimentos,
coloca a sua fé em relação com a pregação do Evangelho. De facto, diz que nele
se cumpre esta passagem da Escritura: «Acreditei e por isso falei» (2Cor 4,13). O Apóstolo refere-se a uma
frase do Salmo 116, onde o salmista exclama: «Eu tinha confiança, mesmo quando
disse: “A minha aflição é muito grande!”» (v. 10). Falar da fé comporta
frequentemente falar também de provas dolorosas, mas é precisamente nelas que
São Paulo vê o anúncio mais convincente do Evangelho, porque é na fraqueza e no
sofrimento que sobressai e se descobre o poder de Deus que supera a nossa
fraqueza e o nosso sofrimento. O próprio Apóstolo se encontra numa situação de
morte que redunda em vida para os cristãos (cf. 2Cor 4,7-12). Na hora da prova, a fé ilumina-nos; e é precisamente
no sofrimento e na fraqueza que se torna claro como «não nos pregamos a nós
mesmos, mas a Cristo Jesus, o Senhor» (2Cor
4,5). O capítulo 11 da Carta aos Hebreus termina com a referência a quantos
sofreram pela fé, entre os quais ocupa um lugar particular Moisés que tomou
sobre si a humilhação de Cristo (cf. vv. 26.35-38). O cristão sabe que o
sofrimento não pode ser eliminado, mas pode adquirir um sentido: pode tornar-se
ato de amor, entrega nas mãos de Deus que não nos abandona e, deste modo, ser
uma etapa de crescimento na fé e no amor. Contemplando a união de Cristo com o
Pai, mesmo no momento de maior sofrimento na cruz (cf. Mc 15,34), o cristão aprende a participar no olhar próprio de
Jesus; até a morte fica iluminada, podendo ser vivida como a última chamada da
fé, o último «Sai da tua terra» (cf. Gn 12,1),
o último «Vem!» pronunciado pelo Pai, a quem nos entregamos com a confiança de
que Ele nos tornará firmes também na passagem definitiva.
O
sofrimento recorda-nos que o serviço da fé ao bem comum é sempre serviço de
esperança que nos faz olhar em frente, sabendo que só a partir de Deus, do
futuro que vem de Jesus ressuscitado, é que a nossa sociedade pode encontrar alicerces
sólidos e duradouros. Neste sentido, a fé está unida à esperança, porque,
embora a nossa morada aqui na terra se vá destruindo, há uma habitação eterna
que Deus já inaugurou em Cristo, no seu corpo (cf. 2Cor 4,16‑5,5). Assim, o dinamismo de fé, esperança e caridade (cf.
1Ts 1,3; 1Cor 13,13) faz-nos abraçar as preocupações de todos os homens, no
nosso caminho rumo àquela cidade, «cujo arquiteto e construtor é o próprio
Deus» (Heb 11,10), porque «a
esperança não engana» (Rm 5,5).
Unida
à fé e à caridade, a esperança projeta-nos para um futuro certo, que se coloca
numa perspetiva diferente relativamente às propostas ilusórias dos ídolos do mundo,
mas que dá novo impulso e nova força à vida de todos os dias. Não deixemos que
nos roubem a esperança, nem permitamos que esta seja anulada por soluções e
propostas imediatas que nos bloqueiam no caminho, que «fragmentam» o tempo transformando-o
em espaço. O
tempo é sempre superior ao espaço: o espaço cristaliza os processos, ao passo
que o tempo projeta para o futuro e impele a caminhar na esperança.
58.
Na parábola do semeador, São Lucas refere estas palavras com que o Senhor
explica o significado da «terra boa»: «São aqueles que, tendo ouvido a palavra
com um coração bom e virtuoso, conservam-na e dão fruto com a sua perseverança»
(Lc 8,15). No contexto do Evangelho
de Lucas, a menção do coração bom e virtuoso, em referência à Palavra ouvida e
conservada, pode constituir um retrato implícito da fé da Virgem Maria; o
próprio evangelista nos fala da memória de Maria, dizendo que conservava no
coração tudo aquilo que ouvia e via, de modo que a Palavra produzisse fruto na
sua vida. A Mãe do Senhor é ícone perfeito da fé, como dirá Santa Isabel:
«Feliz de ti que acreditaste» (Lc 1,45).
Em
Maria, Filha de Sião, tem cumprimento
a longa história de fé do Antigo Testamento, com a narração de tantas mulheres
fiéis a começar por Sara; mulheres que eram, juntamente com os Patriarcas, o
lugar onde a promessa de Deus se cumpria e a vida nova desabrochava. Na
plenitude dos tempos, a Palavra de Deus dirigiu-se a Maria, e Ela acolheu-a com
todo o seu ser, no seu coração, para que nela tomasse carne e nascesse como luz
para os homens. O mártir São Justino, na obra Diálogo com Trifão, tem uma expressão significativa ao dizer que
Maria, quando aceitou a mensagem do Anjo, concebeu «fé e alegria»[49].
De facto, na Mãe de Jesus, a fé mostrou-se cheia de fruto e, quando a nossa
vida espiritual dá fruto, enchemo-nos de alegria, que é o sinal mais claro da
grandeza da fé. Na sua vida, Maria realizou a peregrinação da fé seguindo o seu
Filho[50].
Assim, em Maria, o caminho de fé do Antigo Testamento foi assumido no
seguimento de Jesus e deixa-se transformar por Ele, entrando no olhar próprio
do Filho de Deus encarnado.
59.
Podemos dizer que, na Bem-aventurada Virgem Maria, se cumpre aquilo em que
insisti anteriormente, isto é, que o crente se envolve todo na sua confissão de
fé. Pelo seu vínculo com Jesus, Maria está intimamente associada com aquilo que
acreditamos. Na conceção virginal de Maria, temos um sinal claro da filiação
divina de Cristo: a origem eterna de Cristo está no Pai – Ele é o Filho em
sentido total e único – e por isso nasce, no tempo, sem intervenção do homem.
Sendo Filho, Jesus pode trazer ao mundo um novo início e uma nova luz, a
plenitude do amor fiel de Deus que se entrega aos homens. Por outro lado, a verdadeira
maternidade de Maria garantiu, ao Filho de Deus, uma verdadeira história
humana, uma verdadeira carne na qual morrerá na cruz e ressuscitará dos mortos.
Maria acompanhá-lo-á até à cruz (cf. Jo 19,25),
donde a sua maternidade se estenderá a todo o discípulo de seu Filho (cf. Jo 19,26-27). Estará presente também no
Cenáculo, depois da ressurreição e ascensão de Jesus, para implorar com os
Apóstolos o dom do Espírito (cf. At 1,14).
O movimento de amor entre o Pai e o Filho no Espírito percorreu a nossa
história; Cristo atrai-nos a si para nos poder salvar (cf. Jo 12,32). No centro da fé, encontra-se a confissão de Jesus, Filho
de Deus, nascido de mulher, que nos introduz, pelo dom do Espírito Santo, na
filiação adotiva (cf. Gl 4,4-6).
Ajudai, ó Mãe, a nossa
fé.
Abri o nosso ouvido à
Palavra, para reconhecermos a voz de Deus e o seu chamamento.
Despertai em nós o desejo
de seguir os seus passos, saindo da nossa terra e acolhendo a sua promessa.
Ajudai-nos a deixar-nos
tocar pelo seu amor, para podermos tocá-lo com a fé.
Ajudai-nos a confiar-nos
plenamente a Ele, a crer no seu amor, sobretudo nos momentos de tribulação e
cruz, quando a nossa fé é chamada a amadurecer.
Semeai, na nossa fé, a
alegria do Ressuscitado.
Recordai-nos que quem crê
nunca está sozinho.
Ensinai-nos a ver com os
olhos de Jesus, para que Ele seja luz no nosso caminho. E que esta luz da fé
cresça sempre em nós até chegar aquele dia sem ocaso que é o próprio Cristo,
vosso Filho, nosso Senhor.
Dado
em Roma, junto de São Pedro, no dia 29 de junho, solenidade dos Apóstolos São
Pedro e São Paulo, do ano 2013, primeiro de Pontificado.
ÍNDICE
[3]
«Brief an Elisabeth Nietzsche (11 de junho de 1865)»,
in Werke in drei Bänden (Munique
1954), pp. 953-954.
6 «Embora o Concílio não trate expressamente da
fé, todavia fala dela em cada página, reconhece o seu caráter vital e sobrenatural, supõe‑na íntegra e forte e constrói sobre ela
os seus ensinamentos. Bastaria lembrar as declarações conciliares (...) para
nos darmos conta da importância essencial que o Concílio, coerente com a
tradição doutrinal da Igreja, atribui à fé, à verdadeira fé, aquela que tem
Cristo como fonte e, como canal, o magistério da Igreja» [Paulo VI, Audiência Geral (8 de março de 1967): Insegnamenti V
(1967), 705].
[7] Cf., por exemplo, Conc.
Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei Filius, III: DS 3008-3020;
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina Revelação Dei Verbum, 5; Catecismo da
Igreja Católica, 153-165.
[16]
«Vom Wesen katholischer Weltanschauung (1923)», in Unterscheidung des Christlichen. Gesammelte
Studien 1923-1963 (Mainz
1963), 24.
[19]
Cf. G. H. von Wright
(coord.), Vermischte Bemerkungen/ Culture
and Value, Oxford ,
1991, pp. 32-33 e 61-64.
[23] «A Deus que revela é devida a “obediência da fé” (Rm 16,26; cf. Rm 1,5; 2Cor 10,5-6);
pela fé, o homem entrega-se total e livremente a Deus, oferecendo a Deus
revelador o obséquio pleno da inteligência e da vontade e prestando voluntário
assentimento à sua revelação. Para prestar esta adesão da fé, são necessários a
prévia e concomitante ajuda da graça divina e os interiores auxílios do
Espírito Santo, o qual move e converte a Deus o coração, abre os olhos do
entendimento, e dá a todos a suavidade em aceitar e crer a verdade. Para que a
compreensão da revelação seja sempre mais profunda, o mesmo Espírito Santo
aperfeiçoa sem cessar a fé mediante os seus dons» (Conc. Ecum. Vat. II, Const.
dogm. sobre a divina Revelação, Dei
Verbum, 5).
[24]
Cf. Heinrich
Schlier, «Meditationen über den Johanneischen Begriff der Wahrheit», in Besinnung auf das Neue Testament. Exegetische
Aufsätze und Vorträge 2, Friburgo, Basileia, Viena 1959, p. 272.
[31] Cf. Congr. para a Doutrina da Fé, Decl. Dominus Iesus (6 de agosto de 2000), 15:
AAS 92 (2000), 756.
[33] Cf. Boaventura, Breviloquium, Prol.: Opera
Omnia, V (Quaracchi 1891), 201; in I
librum sententiarum, Proem., q. 1, resp.: Opera Omnia, I (Quaracchi 1891), 7; Tomás
de Aquino, Summa theologiae,
I, q. 1.
[38] Cf. De nuptiis et concupiscentia, I, 4, 5: PL 44, 413 («Habent quippe
intentionem generandi regenerandos, ut qui ex eis saeculi filii nascuntur in
Dei filios renascantur»).
[43] Cf. Agostinho, De sancta virginitate, 48, 48: PL 40, 424-425 («Servatur et in fide inviolata quaedam castitas virginalis, qua Ecclesia
uni viro virgo casta cooptatur»).
[44]
Cf. An Essay on the Development of Christian Doctrine, Londres, Uniform
Edition: Longmans, Green and Company, 1868-1881, pp. 185-189.
[48]
«Choruses from The Rock», in The Collected Poems and Plays 1909-1950, Nova Iorque, 1980, p. 106.
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