Clara põe a correr os inimigos mostrando um ostensório de marfim contendo o Corpo do Senhor,
(Mosteiro de Santa Clara, Cortona, Itália), 2013.
ANUNCIAR A VERDADE
DA RESSURREIÇÃO
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Queridas Irmãs,
o Senhor lhes dê a sua paz!
A cada ano, ao aproximar-se o mês de agosto me pergunto o
que nosso Pai São Francisco quer que eu diga a vocês, que ele amava chamar “Damas
Pobres”. Ele nunca cobiçou pregar a vocês, como sabem, pois confiava no empenho
de vocês com o Evangelho como também na capacidade de guia de Santa Clara e
quer unir-se a vocês para honrar esta grande mulher. Gostaria de iniciar com a
carta que o Santo Padre Francisco, nosso Papa jesuíta-franciscano, escreveu
para a abertura do Jubileu extraordinário da misericórdia. Nesta carta ele nos
recorda o chamado contínuo à conversão feito pelo Pai das Misericórdias. Este
chamado ressoa para nós na descrição que Santa Clara nos deixou de sua vocação como
iluminação a fazer penitência seguindo o exemplo e os ensinamentos de nosso
seráfico pai São Francisco (cf RgCl 6,1). Ela foi tão fiel à sua vocação que
mesmo na hora da morte pode dizer a Frei Rinaldo: “Irmão querido, desde que
conheci a graça de meu Senhor Jesus Cristo por meio do seu servo Francisco, nunca
mais pena alguma me foi molesta, nenhuma penitência foi pesada, doença alguma
foi dura” (LSCl 44); ainda hoje a fonte dinâmica da nossa vida, como seguidores
de Francisco e Clara, é a consciência da graça e da misericórdia de Deus.
Este Ano da Misericórdia tem outra ressonância especial para
nós, pois cai no VIII centenário do Perdão de Assis, que o pai São Francisco
obteve do Papa Honório III em 1216. Ele o pediu porque a Virgem Maria lhe tinha
sugerido – não por nada – mas porque partilhava o imenso desejo de Deus de
reunir a todos com Ele na sua alegria. O desejo de partilhar a misericórdia de
Deus ainda está vivo no coração da Igreja, como este Ano jubilar nos demonstra.
E não mudou nada do nosso empenho desdobrado em realizar o desejo de Francisco
que todos possam ir ao paraíso. O Papa Francisco nos solicita para sermos
missionários da misericórdia aprofundando a nossa vocação e colocando a serviço
de todos os dons recebidos do Pai das Misericórdias.
“Neste contexto, não será
inútil recordar a relação entre justiça e misericórdia. Não são dois aspectos em contraste entre si, mas duas
dimensões duma única realidade que se desenvolve gradualmente até atingir o seu
clímax na plenitude do amor... Seria preciso lembrar que, na Sagrada Escritura,
a justiça é concebida essencialmente como um abandonar-se confiante à vontade
de Deus”. (MV 20)
Francisco entendeu completamente esta concepção da justiça
como entrega de si e na Regra não Bulada chega inclusive a afirmar que “a
esmola é a herança e o justo direito devido aos pobres” (RnB IX,8). Clara também
compreendeu isto e, em sua busca pela justiça, não só deu a sua herança (e uma
parte da herança de sua irmã) aos pobres, mas também deu passos radicais para
seguir Cristo indo viver em São Damião e partilhando a pobreza, a
vulnerabilidade e a fragilidade dos pobres. Se estivesse ainda viva, estamos
certos, teria plena consciência da situação do mundo e uma escuta corajosa da
palavra do Senhor.
Queridas irmãs, como estamos vivendo hoje a justiça desta
entrega de si mesmo à vontade de Deus em um mundo onde os custos do poder e da
riqueza são levados nas costas sobretudo pelos pobres? O que diria Clara a
vocês, suas filhas amadas, às quais confiou o carisma da vida evangélica em fraternidade
sine proprio? Como se poderia conduzir pelo caminho uma vida de
minoridade sempre mais radical, tendo em vista a realidade de nossos tempos? Como
poderíamos conduzir todos nós àquele lugar do coração humano e do mundo onde
permanece escondido o tesouro (3CtIn 7)? O nosso mundo está atravessando uma
profunda crise, seja espiritual que material. Os cristãos ainda são perseguidos
em muitos países, o extremismo e o fanatismo estão emação, milhões de pessoas
precisam fugir por causa da guerra, do terrorismo e da opressão. A necessidade de
contemplação é mais urgente que nunca; e eis porque Clara continua a dizer-nos:
“Medita e contempla e deseja imitá-lo” (2CtIn 20). Sem a graça da contemplação
que nutre o nosso mundo, seria fácil cair no desespero enquanto os problemas
são de fato imensos e fora do nosso alcance.
Há ainda uma outra dor. O nosso belíssimo planeta está
sofrendo incomensuravelmente. Nos últimos cinquenta anos foram extintos um
grande número de espécies, outras foram reduzidas em número devido à perda do
seu habitat. O nosso clima perdeu o seu tradicional equilíbrio e isto causa
inundação ou seca, enquanto globalmente se registra uma falta de água,
realidade essencial para todas as formas de vida sobre o planeta. Todos estes
fatores têm efeitos intensos sobre as plantas, sobre os pássaros, sobre os insetos,
sobre os animais assim como sobre os seres humanos. A necessidade de mostrar
misericórdia à “nossa Irmã Mãe Terra” nunca esteve tão urgente. Há pouco mais e
um ano o Papa Francisco escreveu ao mundo a encíclica Laudato si’,
sublinhando e enfatizando o fato de que a nossa mãe terra também deve ser
considerada entre os pobres a quem se deve justiça. Ele afirma:
“Esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso
irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou. Crescemos a pensar que
éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la. A violência,
que está no coração humano ferido pelo pecado, vislumbrase nos sintomas de
doença que notamos no solo, na água, no ar e nos seres vivos. Por isso, entre
os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e
devastada, que ‘geme e sofre as dores do parto’ (Rm 8, 22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2, 7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta;
o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos” (LS 2).
Diante deste cenário, o Papa Francisco nos mostra que “a crise
ecológica é um apelo a uma profunda conversão interior” (LS 217) e nos mostra o
caminho simples através do qual se pode responder a ambas crises:
“Este é o momento favorável para mudar de vida!... Basta acolher o
convite à conversão e submeter-se à justiça, enquanto a Igreja oferece a
misericórdia” (MV 19).
Como modelo de conversão ele nos ofereceu a santa amada por
todos os franciscanos, Santa Maria Madalena, elevando a celebração de sua
memória a festa. Sabemos que em muitas fraternidades franciscanas das origens
existia uma capela dedicada a Maria Madalena, pois a reconheciam como um paradigma
da conversão, um verdadeiro speculum, o espelho de uma pessoa que doou-se inteiramente no amor,
como o Senhor mesmo testemunha.
Nos é dito que Madalena, porque recebeu misericórdia, amou
muito. Ela teve “a honra de ser a primeira ‘testemunha’ da ressurreição do
Senhor” e tornou-se “ ‘apostolorum apostola’, pois anuncia aos apóstolos aquilo
que por sua vez, eles anunciarão ao mundo inteiro”. Por isso, pode-se
considerá-la de fato como primeira testemunha da Misericórdia divina. Mulher do
coração grande, às vezes também imprudente, “mostrou um grande amor a Cristo e
foi tão amada por Ele” (cf Apostolorum apostola – Artigo de S.E. Dom Arthur
Roche, Secretário da Congregação para o Culto Divino). A misericórdia que ela
recebeu deu fruto quando ela testemunhou a ressurreição e tornou-se apóstola
dos apóstolos.
“Aliás, o amor nunca
poderia ser uma palavra abstrata. Por sua própria natureza, é vida concreta: intenções,
atitudes, comportamentos que se verificam na atividade de todos os dias”
(MV 9).
Podemos dizer que Maria Madalena acompanhou Clara na noite
do Domingo de Ramos na qual ela decidiu unir-se aos frades. Eles tinham já
recitado as laudes da segunda-feira da Semana Santa, lendo o texto relativo a
Maria de Betânia que unge os pés de Jesus e enxuga-os com os seus cabelos – preanunciando
assim, como diz Jesus, a unção para a sepultura (cf Jo 12,1-8). Deve-se dizer
também que Maria de Betânia, mesmo não sendo, na época era muitas vezes
identificada com Maria Madalena. Com as velas daquela liturgia ainda acesas, os
frades cortam os cabelos de Clara e consagram-na ao Senhor. Parafraseando a
Carta aos hebreus, em um certo sentido, Clara “saiu – de casa – para unir-se a ele
fora do acampamento e partilhar o seu opróbrio” (cf Hb 13,13; LSC 7). “Veja que
Ele por ti se fez objeto de desprezo, e segue o seu exemplo tornando-se, por
amor a Ele, desprezível neste mundo” (2CtIn 19), diz Clara a Inês de Praga
alguns anos depois. Desde o início, a vocação de Clara foi marcada pelo amor
àquele “cuja beleza todos os batalhões bem-aventurados dos céus admiram sem
cessar, cuja afeição apaixona, cuja contemplação restaura, cuja bondade nos
sacia, cuja suavidade preenche, cuja lembrança ilumina suavemente, cujo perfume
dará vida aos mortos” (4CtIn 10-13).
A influência de Maria Madalena se pode notar no belíssimo
crucifixo conservado na basílica dedicada a Santa Clara, comissionado pela Irmã
Benedita, a abadessa sucessora de Santa Clara. Nele, Clara, Benedita e
Francisco choram aos pés de Jesus, como a mulher que lavou-lhe os pés com suas
lágrimas e ajudou a prepará-lo para a sepultura. Clara e a Igreja esperam de
nós que nos doemos ao serviço do Senhor, fiéis até o fim e capazes de anunciar
a verdade da ressurreição. Clara solicita a vocês de serem cheias “de coragem
no santo serviço que iniciaram pelo ardente desejo do Crucificado pobre” (1CtIn
13) para serem “modelo, exemplo e espelho” (Test 19).
Em nosso mundo sob pressão, onde inclusive a Mãe terra
sofre, como nós, Frades Menores e Irmãs Menores, podemos viver os valores do
Evangelho em um contexto onde uma pessoa a cada cento e treze é um refugiado e
onde “os desertos exteriores se multiplicam no mundo, porque os desertos
interiores tornaram-se tão amplos” (LS 217)? Este é o desafio sério para nós
hoje. A humanidade sofredora, o nosso planeta que combate e a Família
Franciscana inteira estão pedindo às filhas de Santa Clara para ajudar-nos a
abrir o coração para poder submeter-nos à justiça neste tempo de misericórdia. “É
o momento de ouvir o pranto das pessoas inocentes espoliadas dos bens, da dignidade,
dos afetos, da própria vida” (MV 19). Precisamos do coração compassivo e
contemplativo do movimento franciscano que nos ajuda a escutar o grito dos
pobres e aquele da Mãe Terra. Maria Madalena encontrou o Senhor ressuscitado em
um jardim. Muitos de nós temos um jardim, grande ou pequeno, e como irmão
solicito vivamente a continuar no empenho de trabalhar pela criação, a fim de
que cada ser vivo que tem uma casa sobre este jardim partilhado seja acolhido
com respeito como irmão e irmã, mesmo tendo a consciência de que depois da queda
original o trabalho para os jardineiros tornou-se cada vez mais difícil!
A criação não está à nossa disposição, mas existe para a
glória de Deus e nós seres humanos somos apenas os seus guardas. Ajudem-nos a
não ser como aquele tal da parábola que teve sua grande dívida perdoada mas que
não mostrou misericórdia alguma para com o outro. Precisamos que vocês
continuem a mostrar-nos como vive quem ama de fato o Senhor, dando-nos um
exemplo de respeito à Mãe Terra, diante de tantas ações que exploram-na e
ferem-na para ganhar dinheiro ou para a própria conveniência. Somos todos
chamados a mudar, e falo em nome de todos os franciscanos quando digo que nós
olhamos para vocês, Irmãs Pobres, e lhes pedimos para ajudar-nos. Clara não temeu
“nenhuma pobreza, fatiga, tribulação, humilhação e desprezo do mundo” (RgC
6,2), tudo coisa que, ao contrário, o mundo hoje teme muito. As palavras ditas
a propósito de Maria Madalena aplicam-se de fato também a Clara: pertencia ao
grupo dos seguidores de Jesus, acompanhou-o até os pés da cruz e, no jardim
onde o encontrou perto do túmulo, foi a primeira testemunha da misericórdia
divina (cf Apostolorum apostola – Artigo de S.E. Dom Arthur Roche, Secretário
da Congregação para o Culto Divino).
Nós olhamos
para vocês que nos testemunham “centelhas ardentes da fornalha do fervoroso
coração (LSC 45).
Em nome de todos os Irmãos, desejo a vocês todas as bênçãos
e graças e partilho o sábio desejo do Papa Francisco dirigido às nossas Irmãs
do Protomosteiro:
“O Senhor lhes conceda
uma grande humanidade para serem pessoas que saibam reconhecer os problemas
humanos, que saibam como perdoar, que saibam como pedir ao Senhor em nome do
povo”.
Desejo-lhes uma grande alegria para a celebração da festa da
santa Mãe Clara. Como todos os irmãos, sempre recordo-me de vocês na oração e
peço que se recordem de mim e de toda a Ordem na oração de vocês.
Roma, 15 de julho de 2016 Festa
de São Boaventura, Doutor da Igreja
Frei Michael Anthony Perry, ofm
Ministro Geral e Servo
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