Retalhos Como Francisco e Clara de Assis, a Fraternidade a todos saúda em Paz e Bem!Retalhos

16 de fevereiro de 2010

Via Sacra

A Fraternidade Franciscana Secular de S. Francisco à Luz convida, todos os que desejarem, a participar na Via Sacra que se realizará às sextas feiras da Quaresma, às 18:00 horas, na Igreja de Nossa Senhora da Luz, sita na freguesia de Carnide, em Lisboa. O texto da via- sacra é o que apresentamos. Agradecemos, desde já, toda a união fraterna.Pelo conselho, irmã Maria Francisca Rebordão.



VIA SACRA


A ÁRVORE DA VIDA



MISTÉRIO DO SOFRIMENTO[1]


Quinto fruto:
Confiança nos perigos


1ª Estação - Jesus, vendido por traição


Música:

V.: Nós Vos adoramos e bendizemos, ó Jesus.
R.: Porque pela Vossa santa cruz remiste o mundo.

17. Quem deseje meditar devotamente na Paixão de Cristo
[2], não pode esquivar-se a considerar antes de mais nada a perfídia do traidor. Estava ele tão profundamente impregnado do veneno da velhacaria, que não teve pejo de trair o seu Mestre e Senhor. Vivia tão inflamado pela chama da cobiça, que se atreveu a vender por dinheiro o Deus de bondade, e a negociar como vil mercadoria, por um preço irrisório, o sangue preciosíssimo de Cristo. E enfim, mostrou também o grau supremo de ingratidão, perseguindo até à morte aquele que lhe tinha confiado tudo, e o promovera à suprema dignidade de apóstolo. Foi tão obstinada a sua impenitência, que nem o ambiente familiar da refeição, nem o gesto de humildade e deferência do Mestre, nem a delicadeza do discurso de despedida, nada disso conseguiu demovê-lo do seu plano diabólico.
Em contrapartida, que incrível bondade a do Mestre para com o discípulo rebelde, a do Senhor santíssimo para com o servo malvadíssimo! Não há dúvida que melhor seria para esse homem não ter nascido (Mt 26, 24).

Oração: No entanto, embora a impiedade do traidor seja incomensurável, é infinitamente ultrapassada pela mansidão do Cordeiro de Deus, oferecida aos mortais como exemplo. Assim, a fragilidade humana, mesmo quando exasperada pela ingratidão dalgum amigo, já não tem razão para se queixar como o salmista. Se quem me ofendeu fosse um inimigo, ainda conseguiria suportar... (Sl 55, 13). Ora o homem em quem Jesus depositava toda a confiança[3], que dava a impressão de concordar com ele em tudo e parecia ser seu íntimo e familiar (cf. SI 55, 14), que se alimentava do pão de Cristo e na Ceia sagrada partilhou com ele o divino manjar, esse homem foi exactamente o que se voltou contra ele! (cf. SI 41, 10). No entanto, apesar de tudo isso, o manso Cordeiro não se coibiu de lhe retribuir delicadamente o beijo da traição, aplicando os seus lábios, donde nunca saiu qualquer mentira (1 Pd 2, 22), ao rosto trasbordante de malícia, no momento exacto da traição. Queria assim dar ao discípulo todas as provas de afecto que pudessem abrandar a pertinácia daquele coração depravado.
Pai Nosso



2º Estação - Jesus, prostrado em oração
V.: Nós Vos adoramos e bendizemos, ó Jesus.
R.: Porque pela Vossa santa cruz remiste o mundo.

18. Sabendo Jesus o que lhe ia acontecer segundo misteriosa disposição do alto, depois de cantado o hino de acção de graças no fim da Ceia, saiu para o Monte das Oliveiras na intenção de aí orar ao Pai, como tinha por costume. Ao ser invadido pela agonia da morte, perante a previsível dispersão das ovelhas a quem amava com entranhado afecto, como extremoso Pastor que era, então mais do que nunca foi tão horrível para a sensível natureza humana de Cristo imaginar a morte iminente, que chegou a suplicar: Pai, se é possível, passe de mim este cálice! (Mt 26, 39).
A comprovar a enorme angústia que por diversos motivos experimentou nessa hora o espírito do Redentor, estão as gotas de «suor de sangue» a escorrerem-lhe do corpo para o chão.
Oração: Oh, Jesus, Senhor e Dominador, qual a causa duma ansiedade tão veemente, duma súplica tão angustiada? Não te ofereceste ao Pai em sacrifício totalmente voluntário?» (S.to Anselmo). Sem dúvida. Mas pretendias confirmar a nossa fé na tua humildade, robustecer a nossa esperança, nas horas amargas de sofrimentos idênticos, e inflamar-nos mais e mais no teu amor. Para isso deixaste transparecer assim a debilidade natural da carne com provas tão patentes, dando a entender que em verdade as dores que sofreste foram as nossas dores (cf. Is 53, 4), e foram elas que provocaram a amargura da Paixão.
Pai Nosso


3ª Estação - Jesus cercado por um bando hostil


V.: Nós Vos adoramos e bendizemos, ó Jesus.
R.: Porque pela Vossa santa cruz remiste o mundo.

19. No entanto, Jesus estava espiritualmente preparado para o sofrimento, como se deduz com toda a evidência pelo desenrolar dos factos. Quando, pela calada da noite, um bando de homens sanguinários (SI 55, 24) e decididos a darem-lhe a morte (SI 38, 13), vieram procurá-lo, em companhia do traidor, munidos de archotes, lanterna e armas, foi ele a sair-lhes ao encontro, a identificar-se e a deixar-se prender. No entanto, para que a presunção humana se capacitasse de que nada poderia fazer contra ele senão na medida em que ele o permitisse, com uma simples palavra da sua omnipotência lançou por terra os detestáveis esbirros.
Oração: Porém, mesmo nessa altura o manso Cordeiro não se esqueceu da sua compaixão (SI 77, 10), nem do favo dos seus lábios deixou de escorrer o mel da misericórdia (cf. Ct 4, 11). O caso é que, ao simples contacto da sua mão, recompôs a orelha de certo criado atrevido, mutilada por um dos seus discípulos, e reprimiu a impetuosidade desse defensor, disposto a ferir os atacantes. Maldito seja o furor tão selvagem (Gn 49, 7) dessa canalha, que não se rendeu nem à majestade dum milagre nem à generosidade duma cura.
Pai Nosso


4ª Estação - Jesus preso e manietado


V.: Nós Vos adoramos e bendizemos, ó Jesus.
R.: Porque pela Vossa santa cruz remiste o mundo.

20. Enfim, quem seria tão insensível que não soltasse um gemido de dor ao ouvir o que depois se passou? Como aqueles ferozes esbirros agarraram com suas mãos homicidas o Rei da Glória, ataram as mão inocentes do doce Jesus, e depois, no meio de injúrias, como se dum ladrão se tratasse, arrastaram para o sacrifício o manso Cordeiro, que não proferiu uma só palavra!
Oração: Que aguilhoada de dor não terão nessa altura sentido os corações dos discípulos, ao verem o Mestre e Senhor, a quem tanto amavam, traído por um condiscípulo, de mãos amarradas atrás das costas, a ser levado para a morte como um bandido! Pois se até o miserável Judas veio mais tarde a ficar cheio de remorsos e de amargura, a ponto de preferir suicidar-se a continuar a viver! Mas ai desse homem, pois em vez de acudir à fonte da misericórdia a pedir perdão, deixou-se vencer pelo desespero, horrorizado com a enormidade do seu crime!
Pai Nosso

Cântico: Vinde, adoremos o Senhor Crucificado (11) – Paixão do Senhor
Música (Cont.)



Sexto fruto:
Paciência nas injúrias


5ª Estação - Jesus, desconhecido dos seus


V.: Nós Vos adoramos e bendizemos, ó Jesus.
R.: Porque pela Vossa santa cruz remiste o mundo.

21. Uma vez preso o Pastor, dispersaram-se as ovelhas (Mt 26, 31). Capturado o Mestre, os discípulos puseram-se em fuga. Só Pedro, mais fiel que os outros, o seguiu de longe, até ao átrio do palácio do sumo-sacerdote (cf. Mt 26, 5855). Aí, interpelado três vezes por uma criada, jurou que nem sequer conhecia Cristo. Ao cantar dum galo, o bom Mestre dirigiu ao discípulo predilecto um olhar de comiseração e de graça; e Pedro, recordando então o aviso de Jesus, saiu dali para fora a chorar amargamente (Mt 26, 75).
Oração: Também tu, quem quer que sejas, perante a provocação da criada que é a tua carne, terás porventura renegado descaradamente, por palavras ou por obras, a Cristo que sofreu por ti. Se assim é, recorda a Paixão do extremoso Mestre e sai com Pedro para chorares amargamente por ti mesmo. Pode ser que também para ti dirija o seu olhar aquele que o dirigiu ao Pedro banhado em lágrimas. Tens duas razões para te sentires amargurado: uma é de compunção por ti, outra é de compaixão por Cristo. Enche-te de amargura (cf Lm 3, 15), para que, purificado com Pedro da culpa do pecado, recebas com ele o espírito de santidade.
Pai Nosso


6ª Estação - Jesus, de olhos vendados


V.: Nós Vos adoramos e bendizemos, ó Jesus.
R.: Porque pela Vossa santa cruz remiste o mundo.

22. Apresentado perante os celerados pontífices, reunidos para o efeito em sessão de tribunal, Jesus Cristo confessou a verdade: que era de facto o Filho de Deus. Daí resultou ser declarado réu de morte, por essa declaração ser considerada uma blasfémia. Imediatamente foi submetido a inúmeros ultrajes. Assim, o seu rosto, que os anciãos[4] respeitam e os Anjos suspiram por contemplar, enchendo o Céu de alegria, é conspurcado com escarros cuspidos por lábios imundos; é ferido por mãos sacrílegas e por escárnio coberto com um véu. O Senhor de toda a criação é esbofeteado como um vil escravo; e nessa ocasião, de semblante absolutamente calmo e em tom delicado, não deixou de censurar com brandura o procedimento de um dos criados do pontífice, por lhe ter dado uma bofetada: Se disse alguma coisa de mal, mostra onde está o mal; mas se o que eu disse está certo, porque me bates? (Jo 18, 23).
Oração: Oh, Jesus, como foste sincero e benévolo! Ao ver e ouvir tudo isto, haverá alma devota capaz de conter as lágrimas e ocultar a dor que lhe trespassa o coração?
Pai Nosso

7ª Estação - Jesus, nas mãos de Pilatos


V.: Nós Vos adoramos e bendizemos, ó Jesus.
R.: Porque pela Vossa santa cruz remiste o mundo.

23. Mas a impiedade dos Judeus, verdadeiramente horripilante, não se sentia satisfeita com tantas injúrias. Rugindo de raiva, como feras, apresentam a um ímpio juiz a alma do Justo, para ele a devorar como um cão danado. Os pontífices conduziram Jesus manietado perante Pilatos, requerendo que fosse infligido o suplício da cruz àquele que não tinha cometido absolutamente nenhum pecado (2 Cor, 5, 21). Mas ele, como cordeiro levado ao matadouro, ou como ovelha emudecida na mãos do tosquiador (Is 53, 7), permaneceu de pé, em frente do juiz, manso e calado, enquanto pérfidas testemunhas lhe atribuíam um acervo de falsos crimes, e com um berreiro ensurdecedor pediam a morte para o autor da Vida, e a vida em liberdade para um ladrão desordeiro e homicida. Em sua loucura e malvadez, preferiram o lobo ao cordeiro, a morte à vida, as trevas à luz.
Oração: Oh, doce Jesus! Quem seria tão duro de coração que pudesse ficar impassível, sem um gemido ou um protesto, ao escutar com os ouvidos corporais, ou até só em imaginação, aqueles gritos horríveis. Fora com ele! Fora com ele! Crucifica-o! (Jo 19, 15).
Pai Nosso

8ª Estação - Jesus condenado à morte


V.: Nós Vos adoramos e bendizemos, ó Jesus.
R.: Porque pela Vossa santa cruz remiste o mundo.

24. Pilatos depressa se capacitou que o povo judaico estava assanhado contra Jesus não tanto por zelo de justiça, mas por uma questão de má vontade; por isso lhes afirmou claramente que não encontrava nele qualquer motivo, por mínimo que fosse, para o condenar à morte. No entanto, deixando-se vencer por um receio humano, também ele se sentiu amargurado (Lm 3, 15), e resolveu entregar o rei justo à justiça dum cruel tirano, Herodes, que no entanto se limitou a vilipendiá-lo e logo o devolveu ao remetente. Ordenou então Pilatos, redobrando a crueldade, que o desnudassem perante os seus escarnecedores, para que desumanos algozes lhe dilacerassem com chicotadas atrozes a carne cândida e virginal, multiplicando cruelmente vergões e chagas. O precioso sangue do jovem inocente e amante começou a escorrer-lhe pelas costas abaixo. E isso apesar de não se ter encontrado nele a mais ligeira culpa!
Oração: E tu, homem perdido, em grande parte responsável por ele ter sido assim desfigurado e espezinhado, como não prorrompes num pranto de lágrimas e suspiros? Considera como o Cordeiro inocente, para te livrar duma justa sentença de condenação, aceitou por amor de ti ser condenado a uma sentença injusta. Ele restituiu aquilo que tu roubaste (SI 69, 5), e tu, alma minha malvada e insensível, não pagas com gratidão a sua dedicação, nem retribuis o afecto da sua compaixão!
Pai Nosso

Cântico: Ele foi trespassado (12) – Paixão do Senhor
Música (Cont.)


Sétimo fruto:
Constância nos suplícios

9ª Estação - Jesus desprezado por todos


V.: Nós Vos adoramos e bendizemos, ó Jesus.
R.: Porque pela Vossa santa cruz remiste o mundo.

25. Depois de Pilatos haver decidido satisfazer os desejos malvados dos inimigos de Jesus, os sacrílegos soldados não se contentaram com executá-lo por crucifixão; resolveram antes disso divertir-se com a vítima, submetendo-a a uma sessão de vexames e vilipêndios. Nesse intuito reuniram no pretório toda a corte, tiraram ao condenado a roupa própria, vestiram-no com uma túnica escarlate, puseram-lhe aos ombros um manto de púrpura, enfiaram-lhe na cabeça uma coroa de espinhos e na mão direita uma cana a fingir de ceptro, e considerando-o um rei de comédia, genuflectiam zombeteiramente diante dele enquanto lhe davam bofetadas, lhe cuspiam no rosto e lhe batiam na sagrada cabeça com a cana.
Oração: Presta agora atenção, soberbo coração humano, que tanto horror tens a vexames e tanto anseias por honras. Quem é esse que assim aparece, caracterizado de rei, mas por outro lado escarnecido como o mais vil dos escravos? Não é outro senão o teu verdadeiro Rei e verdadeiro Deus, mas que aceitou ser desprezado e abandonado pelos homens e ser tratado como um leproso (Is 53, 3-4), para te libertar a ti da condenação eterna e te curar da lepra da soberba. Desgraçados, sim, três vezes desgraçados aqueles que, apesar dum exemplo tão eloquente de humildade, se deixam exaltar pelo orgulho! Esses crucificam de novo o Filho de Deus (Hb 6, 6), o qual é tanto mais digno de ser reverenciado pelos homens, quanto maiores foram os ultrajes que por eles sofreu.
Pai Nosso


10ª Estação - Jesus pregado na cruz


V.: Nós Vos adoramos e bendizemos, ó Jesus.
R.: Porque pela Vossa santa cruz remiste o mundo.


26. Quando os ímpios verdugos se cansaram de ridicularizar o Rei manso e humilde, tornaram-lhe a vestir as roupas próprias, embora não tardasse a ser de novo despojado delas. Depois, carregado com uma cruz às costas, foi conduzido a um lugar chamado da Caveira (Jo 19, 17). Aí, pondo-o completamente nu, apenas com um reles farrapo a cobrir-lhe as partes pudendas, arremessam-no brutalmente para cima da haste da cruz, deitam-no ao comprido, esticam-no, puxam-no, estiram-no dum lado e doutro como se estira uma pele, perfuram-lhe mãos e pés com pregos pontiagudos, ficando assim suspenso da cruz apenas por esses cravos, cada vez mais dilacerado com o próprio peso. As suas roupas são divididas entre os carrascos como espólio, enquanto a túnica, por ser uma peça inteiriça, sem costura, é atribuída a um só, tirado à sorte[5] .
Oração: Contempla agora, alma minha, como o Deus para sempre bendito, que está acima de todas as coisas (Rm 9, 5), se vê completamente submerso, desde a planta dos pés ao alto da cabeça, num mar de sofrimento, a ponto de quase se afogar (SI 69, 2), e isto para te livrar a ti de semelhantes sofrimentos.
Coroado de espinhos, obrigam-no a vergar-se ao peso da cruz e a transportar o madeiro da sua própria ignomínia. Conduzido ao local do suplício, é desnudado, de modo a parecer um autêntico leproso, pelos vergões e rasgões da carne, nas costas e nas ilhargas. Depois, traspassado pelos cravos, o teu Amado apresenta-se como uma chaga viva, para te curar. Só queria que Deus me satisfizesse um pedido e realizasse este meu desejo (Jb, 6, 8): ser também eu todo traspassado, no espírito e na carne, e pregado no patíbulo da cruz, juntamente com o meu Amado!
Pai Nosso


11ª Estação - Jesus no meio de ladrões

V.: Nós Vos adoramos e bendizemos, ó Jesus.
R.: Porque pela Vossa santa cruz remiste o mundo.

27. Para aumentar a vergonha, a ignomínia, a desonra e a dor, o Cordeiro inocente é exposto num sítio alto, e apresentado como espectáculo num lugar de execução de malfeitores, fora das muralhas da cidade, como excomungado, em dia de festa e à hora de maior visibilidade, no meio de ladrões, enquanto alguns amigos o choravam e os inimigos o insultavam.
Efectivamente, as pessoas que por ali passavam, abanavam a cabeça (Mt 27, 39) em sinal de desprezo, e muitos que presenciavam a cena faziam troça dele caçoando que salvara outros, mas não era capaz de se salvar a si mesmo (Mt, 27, 42). De tais zombarias não se absteve sequer um dos ladrões. Entretanto, o manso Cordeiro, numa atitude de sublime caridade, interpelava o Pai em favor dos que o tinham crucificado e agora o escarneciam, e prometia o paraíso ao outro ladrão, que se reconhecia culpado e suplicava perdão. Oh, palavra bendita, cheia de compaixão e doçura: Pai, perdoa-lhes! (Lc 23, 34). Oh, expressão rica de amor e de graça: Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso! (Lc 23, 43).
Oração: Podes respirar também tu, ó alma, por mais pecadora que sejas, e ter esperança de perdão, se não te recusares a seguir as pegadas do Senhor Deus que sofreu por ti. Mesmo no meio de tormentos, nunca ele, nem uma só vez, abriu a boca, nem dirigiu a esses cães malditos a mínima palavra para se queixar ou justificar a si, nem tão-pouco para os ameaçar ou amaldiçoar a eles. Pelo contrário, lançou sobre os inimigos uma nova bênção, como nunca tinham ouvido os séculos passados» (S.to Anselmo). Suplica pois, com inteira confiança Tem compaixão de mim, ó Deus, tem compaixão, porque em ti busco protecção (SI 57 , 2). E pode ser que, tal como o bom ladrão que se reconheceu culpado, possas ouvir também no transe da morte. Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso!
Pai Nosso


12ª Estação - Jesus dessedentado com fel

V.: Nós Vos adoramos e bendizemos, ó Jesus.
R.: Porque pela Vossa santa cruz remiste o mundo.

28. Depois disto, como Jesus sabia que a sua obra tinha chegado ao fim, exclamou, para se cumprir o que diz a Sagrada Escritura: «Tenho sede!» (Jo 19, 28). Segundo o testemunho de João, que presenciou a cena, levaram-lhe então aos lábios uma esponja embebida em vinagre misturado com fel; e Jesus, depois de provar, exclamou: Tudo está cumprido! (Jo 19, 30). Dava assim a entender que o essencial da sua amaríssima Paixão consistia precisamente em provar daquela bebida amarga.
Uma vez que Adão se tornou pecador e causador de toda a nossa desgraça por ter saboreado a doçura do fruto duma árvore deliciosa mas proibida, era de facto justo e oportuno encontrar remédio para a nossa salvação pelo processo inverso, provando uma bebida amarga. E se em cada um dos seus membros se iam cravando mais fundo as setas aceradas cujo veneno ele teve de suportar (cf. Jb, 6, 4), apesar de provocarem dores lancinantes, também era justo que não ficassem isentas de qualquer dor a boca e a língua, órgãos de alimentação e de locução.
Assim se cumpria no nosso médico aquele oráculo do profeta: Fez-me comer ervas amargas, deu-me a beber bebidas venenosas (Lm 3, 15). E na doce e amorosa Mãe devia também cumprir-se um outro oráculo: Fiquei assim despedaçada e infeliz para sempre (Lm 1, 13).
Oração: Que língua seria capaz de exprimir, que espírito conseguiria imaginar a imensidade da tua desolação, ó Virgem bendita?[6] A todas estas crueldades infligidas a teu Filho tu estiveste presente, não apenas assistindo a elas, mas sofrendo também com elas. Aquele corpo bendito e santo que concebeste virginalmente, que amamentaste e alimentaste com tanto carinho, que tantas vezes trouxeste ao colo e cobriste de beijos -esse é o mesmo corpo que agora com teus olhos corporais viste a ser dilacerado por azorragues, aguilhoado por espinhos pontiagudos, ferido com pancadas duma cana, esbofeteado e esmurrado, perfurado por cravos, preso e suspenso no madeiro da cruz, a despedaçar-se cada vez mais pelo próprio peso, exposto ao escárnio de toda a gente, e enfim dessedentado com fel e vinagre.
E com os olhos da alma viste também a alma divina de teu Filho saciada com o fel de todas as amarguras, o seu espírito agitado em convulsão, umas vezes com medo, outras com repugnância, ora em luta, ora em tormentos, ou então perturbado e abatido por uma profunda tristeza e dor. Essa dor, embora em parte provocada pela sensação viva do sofrimento físico, resultava mais do seu ardente zelo pela honra divina ofendida pelo pecado, bem como do seu amor compassivo para com as nossas misérias.
Mas a causa principal da dor do teu Filho era a pena que ele sentia por ti, Mãe dulcíssima. Ao ver-te ali diante dele, foi como um dardo a penetrar-lhe até ao fundo do coração.[7]. Por isso, lançando para ti um olhar cheio de ternura, dirigiu-te aquele carinhoso adeus de despedida: Mulher, aí tens o teu filho! (Jo 19,26). Pretendia desta forma consolar a tua alma angustiada, pois não ignorava que tu também te sentias traspassada pela espada de compaixão por ele, mais do que se experimentasses em teu próprio corpo os seus sofrimentos.
Pai Nosso

Cântico: Eu queria ser a fonte (2) – Deus precisa de mim!
Música (Cont.)


Oitavo fruto:
Vitória na morte

13ª Estação - Jesus, sol encoberto pela morte


V.: Nós Vos adoramos e bendizemos, ó Jesus.
R.: Porque pela Vossa santa cruz remiste o mundo.

29. Enquanto o Cordeiro inocente, verdadeiro Sol de justiça, esteve suspenso da cruz durante três horas, o sol visível, como em atitude de compaixão para com o seu Criador, ocultava os seus raios de luz E então, pelo meio da tarde, tudo efectivamente se cumpriu, ao extinguir-se a fonte da vida, quando Jesus, Deus e homem, com voz forte distorcida pelas lágrimas (Hb 5, 7), para manifestar o seu amor misericordioso e patentear o poder da sua Divindade, entregou o espírito nas mãos do Pai e expirou.
Naquele momento, a cortina do templo rasgou-se ao meio, de alto a baixo. A terra tremeu e houve rochas que estalaram e túmulos que se abriram (Mt 27, 51-52). O próprio centurião, apesar de ser pagão, reconheceu que aquele homem era verdadeiramente Deus. Muitos que tinham vindo presenciar o espectáculo para se divertirem, voltaram para casa a bater no peito (Lc 23, 48). O mais formoso dos homens (SI 45, 3), de olhos cerrados e faces lívidas, ficou desfigurado como o mais disforme dos seres humanos, transformado em vítima de holocausto de agradável odor oferecida à glória do Pai, para ele acalmar a sua indignação e dominar o furor da sua ira (cf. SI 85, 4).
Oração: Lança um olhar, Senhor Pai Santo, do santuário onde vives, da tua morada do alto dos céus (cf. Dt 26, 15)! Olha para o rosto do teu Ungido (cf. SI 84, 10), para esta vítima sacrossanta que o nosso Pontífice te oferece pelos nossos pecados, e renuncia à ideia de fazeres mal ao teu povo (Ex 32, 12).
Tu, que por ele foste remido, considera quem é esse que por ti se encontra pendente da cruz. Recorda a grandeza e a dignidade daquele cuja morte ressuscita mortos e faz com que o céu e a terra chorem por ele, e até as duras pedras se fendam, como tocadas de natural compaixão. Mas o coração humano é por vezes mais rijo do que as pedras, pois ao recordar tão inaudito sacrifício de expiação, nem se deixa vencer pelo terror, nem comover pela compaixão, nem abrandar pela ternura!
Pai Nosso

14ª Estação - Jesus traspassado pela lança


V.: Nós Vos adoramos e bendizemos, ó Jesus.
R.: Porque pela Vossa santa cruz remiste o mundo.

30. Do peito de Cristo já morto na cruz devia surgir a Igreja. Para se cumprir o passo da Escritura segundo o qual hão-de contemplar aquele a quem atravessaram com uma lança (Zc 12, 10), um dos soldados aplicou-lhe uma lançada no peito sagrado. Assim o permitiu a Providência divina, para que daí brotasse sangue e água, e dessa forma pudesse derramar-se o preço da nossa salvação. Nascendo de tal fonte, isto é, do fundo do coração de Cristo, esse sangue confere aos sacramentos da Igreja a possibilidade de alimentarem a vida da graça; e para quem já vive em Cristo constitui a bebida que ele prometera, procedente da fonte viva que dá a vida eterna (Jo 4, 14). Em certo modo a lança do soldado romano é como a de Saul – símbolo da perfídia do povo judeu – que errou o golpe, cujo alvo era David, e por disposição divina foi cravar-se na parede (1 Sm 9, 10), abrindo na pedra do muro um buraco que se transformaria em abrigo para um ninho de pomba (cf. 1 Ct 2,14)[8].
Oração: Coragem, ó alma amiga de Cristo! Imita a pomba que constrói o ninho à entrada das cavernas (Jr 48, 28). Como um pardal que encontrou abrigo (cf. SI 48, 4), conserva-te sempre alerta; como a rola, esconde nesse lugar de refúgio os filhos do teu casto amor; aplica os lábios à chaga aberta no peito de Cristo, para aí matares a sede, nessa fonte de salvação (Is 12, 3). É este o manancial que brota no meio do paraíso, e dividindo-se em quatro braços (Gn 2, 10), se espalha pelos corações dedicados, regando e fecundando toda a terra.
Pai Nosso


15ª - Estação - Jesus coberto de sangue


V.: Nós Vos adoramos e bendizemos, ó Jesus.
R.: Porque pela Vossa santa cruz remiste o mundo.

31. Cristo Senhor ficou todo manchado com seu próprio sangue, derramado copiosamente em várias ocasiões: primeiro, misturado com o suor no Getsémani, a seguir com as chicotadas e os espinhos da coroa, depois com os cravos, e finalmente com a lança Assim, revestido da indumentária ritual de Pontífice, de cor encarnada, realizou perante Deus uma abundante redenção (cf SI 130, 7). As suas roupas ficaram vermelhas como as de quem andou a pisar uvas no lagar (Is 63, 2). A sua túnica, como outrora a de José lançado na velha cisterna, tingida em sangue de cabrito, tornou-se semelhante à do homem pecador. (Rm 8, 3), para ser apresentada ao Pai como prova a reconhecer por ele[9].
Oração: «Reconhece, pois, Pai clementíssimo, a túnica do teu predilecto filho José. A inveja dos irmãos despedaçou-o como uma fera cruel, espezinhou-lhe aos pés a túnica e manchou-lhe as suas cores garridas com nódoas de sangue, abrindo nela cinco lastimosos rasgões. É esta, Senhor, a túnica que o teu Filho inocente deixou nas mãos daquela depravada meretriz egípcia, a sinagoga: antes quis descer à prisão da morte despido do manto da carne, do que aceitar uma glória mundana, cedendo à solicitação dum povo adúltero» (S.to Anselmo). Suportou a morte na cruz, sem se importar com a vergonha que havia nisso, sabendo a alegria que o esperava (Hb 12, 2).
E tu também Senhora minha cheia de misericórdia, olha para a roupa sagrada de teu amado Filho, tecida por obra do Espírito Santo de teus membros castíssimos, e juntamente com ele implora o perdão para todos quantos em ti nos refugiamos, a fim de escaparmos ao castigo de Deus que se aproxima (Mt 3, 7).
Pai Nosso



16ª Estação - Jesus sepultado


V.: Nós Vos adoramos e bendizemos, ó Jesus.
R.: Porque pela Vossa santa cruz remiste o mundo.

32. Por último, um nobre decurião, José de Arimateia, depois de obter autorização de Pilatos, veio com Nicodemos retirar da cruz o corpo de Cristo, e depois de o embalsamar sumariamente com óleos aromáticos e o envolver num lençol, com todo o respeito lhe deu sepultura num túmulo novo, que para si mandara abrir na rocha de um jardim próximo. Após esse ritual, o Senhor foi sepultado, e foi confiada a guarda do sepulcro a militares destacados para essa missão. As piedosas e santas mulheres que o tinham acompanhado durante a vida, não quiseram deixar de lhe prestar depois da morte os bons ofícios da sua dedicação. Compraram unguentos para procederem à unção definitiva do corpo de Jesus. Entre elas, Maria Madalena sentia-se de tal modo inflamada de sentimentos de simpatia, tão motivada por uma terna dedicação, e impelida por tão fortes vínculos de amor, que, esquecida da fraqueza do seu sexo, se atreveu a ir sozinha visitar o sepulcro, sem fazer caso da escuridão da noite nem da crueldade dos perseguidores do Mestre. E ali ficou, da parte de fora da gruta, regando com lágrimas o túmulo. Enquanto os discípulos se encontravam longe, ela estava ali mesmo ao pé, inflamada de amor pelo seu Deus, cada vez mais ansiosa por voltar a vê-Io, tão deprimida na impaciência do seu amor, que nada mais lhe restava senão chorar e repetir com inteira verdade aquelas palavras proféticas: As minhas lágrimas são o meu alimento dia e noite, porque a toda a hora me perguntam: «Onde está o teu Deus?» (SI 42, 4).
Oração: Meu Deus, meu bom Jesus! Reconheço que não sou merecedor nem digno da tua graça, como também não mereci tomar parte no desenrolar destes acontecimentos. Mas concede-me que meditando-os agora devotamente, eu possa experimentar sentimentos de compaixão para com o meu Deus, sacrificado e morto por mim, como os experimentaram a tua Mãe inocente e a Madalena penitente na hora da tua Paixão[10].
Pai Nosso


Cântico: Oração da Paz (15) – Deus precisa de mim!

[1] Texto de S. Boaventura, A Árvore da Vida, Meditações Cristológicas, Editorial Franciscana, pág. 49 e segs. – apresentado e anotado pelo Sr. Padre David de Azevedo, OFM
[2] Começa aqui a contemplação da Paixão do Senhor A contemplação da humanidade de Jesus – e mais precisamente da sua Paixão – deu origem, na Idade Média, à assim chamada "espiritualidade martirial", animada pelo desejo de identificação com o crucificado Em alguns casos chegou mesmo à provocação espontânea do sofrimento pela auto-mortificação S Boaventura, embora insista de preferência nos sofrimentos físicos de Jesus, como o leitor poderá verificar nas páginas seguintes, não conduz a alma para ai, mas para a compaixão afectiva E tinha um bom modelo em S Francisco de Assis Este, embora sonhasse com um martírio cruento, não obteve de Deus essa graça O martírio que o Senhor lhe reservou foi o martírio do Alverne consumação duma vida de apaixonado seguimento de Cristo, na fraternidade e na aceitação amorosa da incompreensão dos homens e da fragilidade da natureza Um sofrimento aceite Não procurado
[3] Embora se detenha na contemplação dos sofrimentos físicos de Jesus, o Doutor Seráfico sabe captar a dor mais pungente para o coração humano, a saber, aquela que se dá no mundo do amor, a do amigo atraiçoado pelo amigo. Veja-se como insiste nas provas de amizade de Jesus para com Judas.
[4] O Doutor Seráfico deve ter em mente a liturgia celeste descrita no Apocalipse: «Sempre que os quatro seres vivos cantam hinos de glória, de louvor e acção de graças, àquele que está sentado sobre o trono, e que vive por todo o sempre, os vinte e quatro anciãos caem por terra em adoração...» (Ap 4, 9-10). E a seguir. «Ao que está sentado no trono e ao Cordeiro, louvor, honra, glória e poder para todo o sempre E os quatro seres vivos respondiam: "Ámen!" E os anciãos caíam de joelhos em adoração» (Ap 5, 13-14).
[5] Duro, o realismo com que o A. descreve a crucifixão: «Arremessam-no brutalmente... deitam-no ao comprido... esticam-no... estiram-no... perfuram-lhe as mãos e os pés». Noutro lugar, sobre um fundo de dor e de beleza, compara a cruz a uma cítara. «Uma cítara se fez para ti o teu Esposo, a saber: a cruz faz as vezes da madeira, e o corpo as das cordas na madeira esticadas» (Vitís Mystíca, c. 7, n. 1). Amor e musicalidade.
[6] Verdadeiramente emocionante esta página sobre a desolação de Maria, a Virgem das Dores. Primeiro, a recordação da anterior ternura de mãe para com aquele corpo quando pequenino. Agora, em contrapartida, a desolação ao contemplá-lo todo macerado.
[7] Que delicada, esta interpretação! A major dor de Jesus não foi a dor física, mas o ver a sua Mãe sofrer. A expressão "Mulher, eis aí o teu filho", que as mais das vezes se interpreta como solicitude pelos homens, entregando-os como filhos a Maria – ou então como preocupação prática pela Mãe, assegurando o seu futuro –, S. Boaventura vê-a como "carinhoso adeus de despedida", a tentar consolá-la da dor que ela sentia, esquecendo-se de si mesmo.
[8] O A. tem na mente a cena da saga do Rei David, quando Saul, comido de ciúmes, o tenta matar com um golpe de lança, mas erra o alvo, ficando a lança cravada na parede (Cf. 1 Rs 19, 10). Aqui a parede é o lado de Cristo. Nela a lança do soldado abriu uma fenda para que a alma possa entrar, e, como a pomba, fazer ninho no coração de Jesus; ou, como a rola, possa guardar lá os seus filhos; ou, como os judeus no deserto, que beberam do rochedo fendido pela vara de Moisés, possa aplicar os lábios à chaga aberta no peito de Cristo, para "aí matar a sede nessa fonte de salvação".
[9] O autor compara o corpo chagado de Jesus à túnica de José do Egipto, que os irmãos sujaram de sangue e levaram a seu pai Jacob. O corpo de Jesus torna-se túnica do homem pecador, que dessa forma se salva, porque os olhos do Pai param nos sofrimentos do Filho inocente. Delicada a referência também a Maria, de cujo corpo, pela agulha do Espírito Santo, fora essa túnica tecida. Que ela junte a sua intercessão à das chagas de seu Filho.
[10] Foi longa a contemplação da Paixão do Senhor. Mas não é de estranhar, porquanto, se Jesus, o Verbo Encarnado, é mistério abrangente no qual se enquadra o Universo e a História toda, a Cruz é o epicentro desse mistério. Para Boaventura a Cruz não é só um tema religioso. É um dado filosófico e meta físico. Para ele, mais importante que a realidade objectiva do Universo, é a História. A tarefa do filósofo e do teólogo é descobrir o "segredo" dessa história, partir a casca da noz e chegar ao miolo. Ora o "miolo" é o Amor; e a revelação total do Amor é a Cruz. Por isso ela é a "estrutura meta física do Universo"; nela se pode iluminar, na mente, "toda a máquina do Universo" (Breviloquium, prol. 4) Pela Encarnação, Cristo tornou-se o centro do mundo. A Cruz, por sua vez, é o profundum Christi. Assim sendo, toda a meta física consiste em descobrir essa "profundidade de Cristo" (Hexaem. 2,32).

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