Só aí, na cruz, ao beber o cálice amargo, Jesus
tornou-se homem até ao máximo das Suas possibilidades, … mas o fruto da árvore
amarga da cruz é a alegre notícia da Páscoa.
DESPOJAMENTO E CRUZ
‘Formas de seguir
Jesus’
«Se
os homens soubessem... que Deus "sofre" connosco e muito mais do que
nós todo o mal que devasta a terra, muitas coisas mudariam sem dúvida e muitas
almas seriam libertadas» (J. Maritain). Os traços do rosto trinitário de Deus,
revelados na história da Paixão e morte de Jesus de Nazaré, chamam o homem à
liberdade no seguimento da Cruz.
a)
A cruz é o lugar em que Deus fala no silêncio, o silêncio da finitude humana,
que por amor se tornou a Sua finitude! O mistério escondido nas trevas da cruz
é o mistério
da dor de Deus e do Seu amor. Um aspecto exige o outro: o Deus
cristão sofre porque ama, e ama enquanto sofre. Ele é o Deus «da compaixão»,
porque é o Deus para nós, que Se dá até ao ponto de sair totalmente de Si, de
se despojar de tudo, na alienação da morte, para nos acolher plenamente em Si,
na doação da vida que é feita por Jesus. Na morte de cruz o Filho entrou no
«fim» do homem, no abismo da sua pobreza, do seu despojamento, da sua tristeza,
da sua solidão, da sua escuridão. E somente aí, ao beber o cálice amargo, que
viveu até ao fundo a experiência da nossa condição humana,- na escola da dor
tornou-Se homem até ao máximo das Suas possibilidades. Mas também o Pai
conheceu a dor, pois na hora da cruz, enquanto o Filho Se oferecia a Ele numa
obediência incondicional e numa infinita solidariedade com os pecadores, também
o Pai fez história! Ele sofreu como Inocente entregue injustamente à morte; e,
todavia, optou por oferecê-Lo, para que na humildade e na ignomínia da cruz se
revelasse aos homens o amor trinitário de Deus por eles e a possibilidade de
se tornarem participantes. E o Espírito, «entregue» por Jesus moribundo ao Seu
Pai, não esteve menos presente no escon- dimento daquela hora;
Espírito de extremo silêncio, Ele foi o espaço divino do sofrimento doloroso e
amante que se consumou entre o Senhor do céu e da terra e Aquele que Se fez
pecado por nós, de modo que se abrisse uma passagem no abismo e se fechasse
para os pobres o caminho do Pobre.
Esta
morte em Deus não significa, porém, a morte de Deus que o «louco» de Nietzsche
vai gritanto nas praças do mundo,- não há nem nunca haverá um tempo em que se
possa cantar com verdade o «Requiem aeternam Deo»! O amor trinitário que une o
Abandonante ao Abandonado, e nestes o mundo, vencerá a morte, apesar do aparente
triunfo desta. É no despojamento total de Si mesmo que Jesus manifesta a
plenitude do amor de Deus. A surpreendente identidade do Crucificado e do
Ressuscitado mostra abertamente o que se revelou na cruz «sub contrario» e
garante que aquele fim é um novo princípio: o cálice da paixão de Deus
encheu-se com uma bebida de vida, que dimana e jorra para sempre (cf. Jo
7,37-39). Adão morreu, nasceu o novo Adão, Cristo e o homem que, com Ele e
n'Ele, vence o pecado e a morte. Deus morreu, mas ofereceu-Se a todos os homens
o mistério do Pai que, acolhendo o Abandonado no momento da glória, acolhe-os
também conSigo. O fruto da árvore amarga da cruz é a alegre notícia da Páscoa:
o dia em que Deus morreu dá lugar ao dia do Deus que vive. O Consolador do
Crucificado foi derramado em toda a carne para ser o Consolador de todos os
crucificados da história e para revelar na humildade e na ignomínia da cruz, de
todas as cruzes da história, a presença corroborante e transformadora do Deus
cristão.
A «palavra da cruz»
(ICor 1,18) demonstra que é no despojamento, na pobreza, na fraqueza, na dor e
na reprovação do mundo, que encontraremos Deus, - não os esplendores das perfeições
terrenas, mas precisamente o seu contrário, a pequenez e a ignomínia, tornam-se
o lugar da Sua presença entre nós, o deserto onde Ele fala ao nosso coração. A
perfeição do Deus cristão manifesta-se nas imperfeições, que Ele assume por
nosso amor: a finitude do sofrimento, a dor extrema da morte, a fraqueza da
pobreza, o cansaço e a incerteza do amanhã, são outros tantos lugares, onde
Ele mostra o Seu amor, perfeito até à consumação total do dom. E nestas
imperfeições que ecoa no Espírito a palavra que sela o acontecimento da cruz:
«Tudo está realizado» (Jo 19, 30). Na vida de cada homem já pode ser
reconhecida a cruz do Deus trinitário: no sofrimento torna-se possível abrir-se
ao Deus presente, que Se oferece connosco e por nós, e transformar a dor em
amor, o sofrimento em oferecimento. O Espírito do Crucificado opera o milagre
desta revelação salvífica: Ele é o Consolador da paixão do mundo, Aquele que
proclama a verdade da história dos vencidos, confundindo a história dos
vencedores. Vive connosco e em nós as agonias da vida, tornando presente no
nosso sofrimento o sofrimento do Filho e do Pai, e por isso, abrinos-nos uma
aurora de vida, revelação e dom do mistério de Deus. A «kenosis»
do Espírito nas trevas do tempo dos homens é apenas o fruto da «kenosis»
do Verbo na história da paixão e morte de Jesus de Nazaré, a última
consequência do maior amor, que venceu e vencerá a morte.
b)
Como se configuram a Igreja e cada um dos discípulos do Deus trinitário, que
sofre por nosso amor? Constituem o povo da sequela crucis, a comunidade
e o indivíduo «debaixo da cruz». Precedidos por Cristo no abismo da prova, por
meio do qual se abre o caminho da vida, os cristãos sabem que devem viver no
sinal da cruz as obras e os dias do seu caminho. «Fui morto na cruz com Cristo.
Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim. E esta vida
que agora vivo, eu vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e Se entregou
por mim» (Gal 2,20). «Ainda peregrinando na terra, enquanto seguimos as Suas
pegadas na tribulação e na perseguição, somos associados aos Seus sofrimentos,
como o corpo à cabeça, e sofremos com Ele, para ser com Ele glorificados (cf.
Rm 8,17)» (Lúmen
Gentium, 7). Nada está mais longe da imagem do discípulo do
Crucificado do que uma Igreja tranquila e segura, confiante nos seus meios e
nas suas influências: «A
cristandade estabelecida na qual todos são cristãos, mas na sua
interioridade secreta não se parece com a Igreja militante mais do que o
silêncio da morte com a eloquência da paixão» (Kierkegaard). A Igreja ao pé da
cruz é o povo daqueles que, com Cristo e no Seu Espírito, se esforçam por sair
de si e entrar no caminho doloroso do amor; é uma comunidade de pobres ao
serviço dos pobres, capaz de refutar com a vida os sábios e poderosos desta
terra. Uma Igreja ao pé da cruz significa também uma comunidade fecunda na dor
dos seus membros: o seguimento do Nazareno, fonte de vida que vence a morte,
exige que se percorra com Ele o escuro caminho da paixão: «Se alguém quiser
seguir-Me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me. Pois quem quiser
salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem perde a sua vida por causa da Boa
Notícia, vai salvá-la» (Mc 8,34-35 e par.). «Quem não toma a sua cruz e Me
segue não é digno de Mim» (Mt 10,38 e Lc 14,27). O discípulo deverá «completar
na sua carne o que falta aos sofrimentos de Cristo» (Col 1,24): fá-lo-á se
conseguir levar a mais pesada de todas as cruzes, a cruz do presente, para a
qual é chamado pelo Pai, crendo também sem ver, lutando e esperando, mersmo sem
notar a germinação dos frutos, na solidariedade com todos aqueles que sofrem
(cf. 1Cor 15,26), na comunhão com Cristo, companheiro e sustentáculo do
sofrimento humano e na oblação ao Pai, que valoriza cada uma das nossas dores.
Esta cruz do presente é o trabalho da fidelidade e também a perseguição
realizado pelos «inimigos da cruz de Cristo» (Fil 3,18). A «via crucis» da
fidelidade faz-se de luta interior e das agonias silenciosas dos momentos de
prova, de solidão e de dúvida, de despojamento e é sustentada pela oração
perseverante e tenaz de uma pobreza que espera a misericórdia do Pai; a mesma
«via crucis» da fidelidade de Jesus, com a diferença de que Ele percorreu-a
sozinho, enquanto nós fomos precedidos e acompanhados por Ele. A cruz da
perseguição é, pelo contrário, a consequência do amor pela justiça e da
revitalização de cada suposto absoluto mundano, da parte dos discípulos do
Crucificado; é que a sua esperança no Reino futuro os torna subversivos e
críticos em realção às miopias de todos os vencedores e dominadores da
história. «Eis que Eu vos envio como ovelhas para o meio de lobos... Sereis
odiados por todos por causa do Meu nome» (Mt 10,16.22; cf. 16ss). A
radicalidade das opções de uma Igreja verdadeiramente evangélica é intolerável
para todos os sistemas de poder e de riqueza: «Dilexi iustitiam, odivi iniqui-
tatem, propterea morior in exilio» (palavras escritas sobre o túmulo do Papa
Gregório VII): quem amou a justiça, quem odiou a iniquidade, morrerá inevitavelmente
no exílio da cruz, mas confortado e sustentado pelo Crucificado, que venceu a
morte. «Basta-te a Minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o
seu poder» (2Cor 12,9).
A
Igreja ao pé da cruz torna-se assim, pela sua própria fome e sede do mundo novo
de Deus e pela graça de que é instrumento, um povo que ajuda a levar a cruz e
que combate as causas iníquas das cruzes de todos os oprimidos, pois
confronta-se com as prisões de toda a espécie de lei e com a escravidão de todo
o género de poder e, como o seu Senhor, apresenta-se como alternativa humilde
e corajosa. O Crucificado não hesita em identificar-Se com todos os
crucificados da história: «Estava com fome e destes-me de comer; estava com
sede e destes-Me de beber; era estrangeiro e recebestes-Me na vossa casa, -
estava sem roupa e vestistes-Me; estava doente e cuidastes de Mim;
estava na prisão e fostes visitar-Me... Todas as vezes que fizestes isto a um
dos menores dos meus irmãos, foi a Mim que o fizestes» (Mt 25,35-36.40). Nos
perseguidos é Ele que está presente: «Saulo, Saulo, porque Me
persegues?» (Act 9,4). Quem ama o Crucificado e O segue não pode deixar de se
sentir chamado a aliviar as cruzes de todos os que sofrem e destruir as suas
causas iníquas com a palavra e com a vida. A cruz da libertação do pecado e da
morte exige a libertação de todas as cruzes que são fruto da morte e do pecado:
a «imitatio Christi crucifixi» nunca poderá ser aceitação passiva do mal presente!
Pelo contrário, con- sumar-se-á na dedicação activa na causa do Reino futuro,
que é também empenhamento activo e vigilante para fazer do Calvário da terra um
lugar de ressurreição, de justiça e de vida plena. A compaixão para com o Crucificado
traduz-se na compaixão activa para com os membros do Seu corpo na história; por
uma Igreja que se debate no problema da relação entre a sua identidade e a sua
importância, entre a fidelidade e a criatividade audaciosa, isto significa o
reconhecimento da possibilidade de resolução. A Igreja reencontra-se-á se se
perder, se puser a sua identidade exactamente ao serviço dos outros, para a
reencontrar no único nível digno dos seguidores do Crucificado: o amor.
Ao discípulo, esmagado
debaixo do peso da cruz ou amedrontado face às exigências do seguimento,
dirige-se a palavra da promessa, manifestada na ressurreição, contradição de
todas as cruzes da história; palavra de consolação e de compromisso, que já
sustentou a vida, a dor e a morte de todos os que nos precederam no combate da
fé. «Na verdade, assim como os sofrimentos de Cristo são numerosos para nós,
assim também é grande a nossa consolação por meio de Cristo» (2Cor 1,5). «Somos
atribulados por todos os lados, mas não desanimamos, - somos postos em extrema
dificuldade, mas não somos vencidos por nenhum obstáculo; somos perseguidos,
mas não abandonados; prostrados por terra, mas não aniquilados. Sem cessar e
por toda a parte levamos no nosso corpo a morte de Jesus, a fim de que também a
vida se Jesus se manifeste no nosso corpo» (2Cor 4,8-10). Naquele que se
esforça por viver assim, a cruz de Cristo não foi em vao (cf. 1Cor 1,17): nele
se manifestará também a vitória do Humilde, que venceu o mundo (cf. Jo 16,33)!
Pai,
que entregas o Teu único Filho por nós, Filho que vive
o
supremo abandono da cruz
e
o oferece àquele que Te abandona,
Paráclito
do sofrimento,
que
unes o Pai que dá e acolhe
ao
Filho moribundo
e
n'Ele à paixão do mundo,
Trindade
da dor,
Deus
escondido nas trevas
da
Sexta-Feira Santa,
concede-nos,
Te pedimos,
que
tomemos cada dia
a
cruz do abandono,
e
a ofereçamos conTigo
numa
comunhão maior:
aquela
em que Te revelas
Trindade
do amor,
Deus
da solidariedade
e
da proximidade
da
fraqueza da Tua criatura.
Amen.
Aleluia!
Perguntas que se impõem sobre o despojamento do
discípulo: Estou disposto a ler a minha vida a
partir da cruz? Sei reconhecer a cruz na minha vida? Como vivo a esperança da
Cruz? Em que medida ajudo os outros a levar a sua cruz?
Bruno Forte
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