FESTA DE SÃO VICENTE
Padroeiro do Patriarcado de Lisboa
(22 de janeiro 2017)
Desde muito cedo foi objeto de um culto amplamente difundido. Já o grande
poeta Paulino de Nola, que viveu na segunda metade do século IV e na primeira
do século V, lhe atribuía o mesmo estatuto que o de S. Ambrósio em Itália, ou o
de S. Martinho de Tours na Gália. O seu contemporâneo Prudêncio dedica-lhe um
longo poema, além de largo excerto noutro hino a propósito da cidade natal do
mártir, Saragoça. Nos primeiros anos do século V, por volta de 410-412,
Agostinho assim dizia em Cartago num dos sermões compostos para a missa da
festa do mártir ("Sermo" 276, PL 38, 1257):
«Qual é hoje a região, qual a província, até onde quer que se estenda tanto
o império romano como o nome de Cristo, que não rejubile por celebrar o dia
consagrado a Vicente?»
Segundo a tradição hagiográfica, os acontecimentos ter-se-iam passado na
sequência de uma série de decretos dos imperadores Diocleciano e Maximiano,
emitidos nos anos 303 e 304, que intentavam reprimir o culto cristão por todo o
império. Vicente seria diácono em Saragoça, quando é preso por um governador de
quem não temos qualquer outra referência e cuja existência é muito
problemática, de nome Daciano. Recusando revelar o sítio dos livros de culto e
abjurar, como ordenava o decreto imperial, é levado para Valência (episódio
singular, pois Saragoça e Valência pertenciam a províncias distintas, uma à
Tarraconense, a outra à Cartaginense, cada uma com o seu próprio governador).
Das sequelas do interrogatório sob tortura a que foi submetido, faleceu a 22 de
janeiro do ano 304.
Após a morte, a hagiografia deixou-nos acontecimentos miraculosos, como o
episódio do corvo e o do regresso do corpo a terra, após ter sido lançado ao
mar. Poucos anos depois, a partir de 313, no tempo do imperador Constantino,
constrói-se um sepulcro martirial em Valência, que mais tarde daria lugar uma
basílica extramuros, onde o corpo era venerado pelos devotos.
O culto difundiu-se rapidamente. Corroborando os textos hagiográficos,
Valência assumiu-se desde logo como sua sede privilegiada. Aqui ficava a igreja
que acolhia o corpo do mártir, citada por Prudêncio e pela Paixão traduzida
mais adiante. Além disso, uma inscrição transmitida por um manuscrito do século
IX indica que o bispo Justiniano (527-548), membro de uma família de ilustres
literatos e eclesiásticos, além de muito devoto do santo, terá deixado os seus
bens em testamento a um mosteiro dedicado a S. Vicente, que a tradição
identifica hoje com San Vicente de la Roqueta.
O outro local importante era Saragoça, onde Vicente fora diácono e onde o
seu martírio começara. Já em finais do século IV e inícios do século V, o poeta
Prudêncio refere o culto que aí se desenvolvia, aludindo a umas relíquias (fala
de algum objeto com o sangue do mártir). Em 541, durante o cerco de
Childeberto, rei da Nêustria, Saragoça teria sido salva pela intervenção
miraculosa da túnica do mártir, em episódio mais adiante referido. Na primeira
metade do século VII, o poeta Eugénio de Toledo dedica um epigrama a uma igreja
do santo, aludindo ao sangue e à túnica, túnica que reaparece numa oração da
missa composta na mesma altura. Eugénio foi, de resto, arcediago desta igreja.
Além de Valência e Saragoça, cidades indissociáveis da figura de S.
Vicente, o culto cedo se estendeu a outras cidades da Hispânia. Em Sevilha, já
antes de 428, quando os Vândalos invadem a cidade, a catedral onde Isidoro se
recolheu na véspera de morrer estaria dedicada a S. Vicente. A catedral de
Córdova também estaria sob a invocação do mártir em período anterior às
invasões muçulmanas.
A epigrafia documenta-nos o desenvolvimento do culto em época recuada.
Temos conhecimento, talvez no século V, de uma igreja em Toledo. No século VI,
há notícia de três igrejas dedicadas ao mártir: uma em Nativola, Granada
(consagrada em 594), outra em Cehegín na província de Múrcia, e uma terceira em
Loja, perto de Córdova. No século VII, no ano 644, consagra-se um templo em
Vejer de la Miel, perto de Cádis. Também o calendário epigráfico de Carmona,
porventura do século VI ou VII, assinala o dia do santo. No século VII, o
impulso dado ao culto é atestado pela significativa produção litúrgica (um
hino, orações, uma missa, sermões), alguma da qual percorreremos nas páginas
seguintes.
E desde o século VIII até ao século X, a proliferação de igrejas dedicadas
a S. Vicente é notável por toda a Hispânia: cite-se apenas Oviedo, onde em 761
são depositadas umas relíquias trazidas de Valência.
Em África, sabemos que, por inícios do século V, o dia de S. Vicente era
celebrado com grande solenidade. O ilustre Agostinho redigiu, entre 410 e 412,
quatro sermões para este dia, um outro com larga referência, e, se acaso for do
bispo de Hipona, um sexto entre 410 e 419 ("Serm. 4 De
Iacob et Iesau"). Em quatro deles indica expressamente que
tinham acabado de escutar a leitura da Paixão do mártir. No século VI, o seu
culto está atestado por um calendário litúrgico de Cartago, escrito entre 506 e
535, por alguns sermões anónimos e pela epigrafia.
Na Gália e Aquitânia, o culto remonta, pelo menos, a meados do século V.
(...) O século IX assiste a uma notável expansão do culto de S. Vicente (...).
Mas, de longe, a igreja mais famosa na Gália é a de Paris. Em 541, em campanha
contra o rei visigodo Têudis, o rei Childeberto da Nêustria sitia Saragoça. A
túnica de Vicente, mencionada por Eugénio de Toledo e na missa reelaborada no
século VI na Hispânia, então reino dos Visigodos, foi levada em procissão em
redor das muralhas e a cidade foi salva. Childeberto pediu então ao bispo da
cidade relíquias do mártir. Este concedeu-lhe a estola (espécie de manto que se
usava sobre a túnica). No regresso, Childeberto edificou em Paris uma basílica
dedicada a S. Vicente onde depositou a relíquia, tendo sido consagrada em 558
pelo bispo de Paris, Germano. Este foi o panteão dos primeiros reis
merovíngios. Nos finais do século X e inícios do século XI, a igreja foi
reconstruída. Em 1163, a igreja foi dedicada de novo a S. Germano, sendo desde
então conhecida como Saint-Germain-des-Prés. Em Itália, o culto também se
desenvolveu desde muito cedo. (...)
Por estas brevíssimas notas, é evidente a espantosa difusão que o culto a
S. Vicente alcançou nos séculos anteriores à nossa nacionalidade. Ora, sucede
que os inícios do reino de Portugal, e, em particular, a cidade de Lisboa,
estão indissociavelmente ligados ao diácono de Saragoça.
Já antes da conquista de Lisboa por D. Afonso Henriques, temos notícia da
existência de basílicas dedicadas ao mártir no que será mais tarde território
português. Um documento do ano 830 (seguido de dois outros de cerca de 90S e do
ano 911) refere uma igreja dedicada a S. Vicente em Infias, Braga, que poderá
remontar ao século VII. Em 972, documentação referente ao mosteiro do Lorvão
menciona uma igreja nas imediações de Coimbra; documentos dos anos 970 e 973
aludem a uma Porta de S. Vicente, nos limites das terras de um mosteiro
designado "de Bacalusti", nas margens do rio Douro; em 978 e 1002
refere-se uma igreja de S. Vicente "de Pararia".
Antes de 1094, quando passa para a posse do bispo de Coimbra, o mosteiro da
Vacariça, na região da Mealhada, associava a invocação a S. Vicente à de S.
Salvador, e já antes de meados do século XI, o mosteiro de Guimarães tinha o
mártir de Valência como um dos seus titulares secundários. O censual de Braga,
escrito entre 108S e 1091, do qual se conserva apenas a parte respeitante à
região entre o Lima e o Ave, refere oito igrejas dedicadas a S. Vicente, e mais
duas em que o mártir se associa a outro patrono. Enfim, a documentação medieval
identifica noutras regiões outras igrejas sob a invocação do mártir que podem
remontar a período anterior a meados do século XII.
Em Lisboa, a mais antiga atestação remonta ao tempo do nosso primeiro rei.
Ao sitiar Lisboa em 1147, D. Afonso Henriques fizera o voto de, se a cidade lhe
caísse nas mãos e os infiéis fossem aniquilados, mandar construir dois
mosteiros junto a dois cemitérios que se revelavam necessários para sepultar os
cruzados que sucumbiam junto às muralhas do castelo. Uma das igrejas foi
erigida junto ao cemitério dos teutónicos em 1148 sob a invocação de S.
Vicente. Não sabemos se já ali haveria um culto mais antigo, se era uma criação
expressa. Tendo o rei dado a escolher ao bispo D. Gilberto e aos cónegos uma
das duas igrejas, estes optaram por Santa Maria dos Mártires (a atual Sé de
Lisboa), junto ao cemitério dos ingleses. A igreja de S. Vicente ficou então na
posse do rei, e foi dirigida por presbíteros ingleses, até D. Afonso Henriques
nomear o primeiro prior, Gualter, de origem flamenga, a que se seguiram cónegos
regrantes da confiança do rei. Isto é relatado na "Notícia da fundação do
mosteiro de S. Vicente", redigida em 1188.
Mas o que liga intrinsecamente Lisboa a S. Vicente é a chegada das suas
relíquias ocorrida em 1173. Conta a "Crónica de Al-Razi", composta no
século X, que conhecemos por intermédio de uma tradução portuguesa do século
XIV feita a mando de D. Dinis, que, durante a perseguição de Abderramán I
(756-788), o corpo de S. Vicente fora levado de Valência, onde estaria na
antiga igreja sob sua invocação, para o Promontório Sacro, hoje Cabo de S.
Vicente, em Sagres. O caráter sagrado do local já na Antiguidade era
assinalado, desde, pelo menos, o geógrafo Estrabão, que viveu nos séculos I a.
C. e I d. c., Plínio (século I d. C.) e outros autores do mundo clássico.
A "História PseudoIsidoriana" e o geógrafo Al-Idrisi
em obra de meados do século XII afirmavam que ali existiria uma "igreja
dos corvos". Porventura, desde época recuada, ali poderia ter havido uma
capela. Esta tradição sustentava a pretensão de Lisboa, pretensão essa apoiada
nos séculos XVI e XVIII por Ambrosio de Morales e Henrique Flórez: seria aqui
que estavam efetivamente as relíquias do santo.
Diga-se que Lisboa não era a única cidade a presumir ter o corpo do mártir.
Aimoin de Saint-Gerrnain-des-Prés conta que o corpo do mártir fora trazido, em
863, de Valência para Castres, uma cidade no sul de França. No século XI, um
braço num relicário fora levado de Valência para Bari. Também San Vincenzo ai
Volturno (desde inícios do século VIII), e depois Cortona e Metz, Benevento e
Monembasia (no sul da Grécia), reclamavam deter o corpo do santo. Por outro
lado, o século XII é um período de intenso "achamento" de corpos
santos e relíquias, geralmente com o objetivo de promover a peregrinação e
ampliar o prestígio e o estatuto das respetivas igrejas. Relembre-se apenas, no
início do século, Braga e Compostela, que se dedicaram à disputa da posse de
corpos santos.
Neste contexto, em 1173, de acordo com um texto de finais do século XII ou
do século XIII da autoria de Estêvão, chantre da catedral de Lisboa, e que
segundo Aires Nascimento, corresponde ao momento da instauração do culto na
diocese de Lisboa, um anónimo alerta para a existência do corpo do mártir na
ponta do Algarve, em mãos dos infiéis. No dia 15 de setembro, as relíquias
chegam a Lisboa, ficando na igreja de Santa Justa, antes de se recolherem no
dia seguinte na Sé, com a oposição da igreja real de S. Vicente. O mártir de
Valência tornou-se assim o padroeiro de Lisboa, sendo o dia da chegada do seu
corpo celebrado na liturgia e em animadas festas populares (15 de setembro). E
este dia, que no século XIX mudou para 22 de janeiro, foi comemorado até
recentemente.
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