O Processo de Cristo
O
processo de Cristo não foi injusto só por razões intemporais – foi-o também
como processo contra um homem do seu tempo, à luz do direito aplicável. As razões
da acusação, conduzida por Herodes, revelam um aproveitamento da ocupação
romana pelos representantes políticos dos judeus, para impedir qualquer
contestação à interpretação oficial da sua lei.
Os
"crimes" de Cristo têm caráter religioso. Jesus foi acusado de
interpretar a lei num sentido não ritualista, associado à ética, fazer milagres
ao sábado, conviver com pessoas de "maus costumes" e se assumir como
rei de um reino diferente. A lei do seu povo, que o condenou, tornou-se
prepotente e contraditória com o seu sentido último: a salvação.
O
processo de Cristo foi ainda injusto porque os romanos, detentores do poder
político, se demitiram de intervir. Pilatos portou-se como precursor do moderno
multiculturalismo, admitindo que Jesus fosse julgado segundo critérios injustos
à luz dos seus próprios padrões morais, culturais e jurídicos. A razão de
Estado e a pura cobardia vergaram a Justiça.
O
que se perceciona, numa perspetiva histórica, é que Jesus foi injustamente
condenado em qualquer tempo e no seu tempo. Prevaleceu, no julgamento, uma
conceção do Direito como lei ritual, isenta de justificação e compatível com
qualquer conteúdo. A injustiça residiu na profunda divergência entre a lei
formal e o sentido último do Direito e da Justiça.
As
autoridades judaicas, que não podiam proferir uma condenação à morte, remeteram
para a lei romana e esta, apesar de não encontrar nenhuma culpa em Jesus, pois
Pilatos reconheceu a sua inocência, remeteu para a lei judaica. A lei que
condenou Cristo não existia – foi criada pelo interesse político, que juntou a
perversão de uns com a omissão de outros.
A
condenação de Cristo revela arquétipos do processo penal que devemos rejeitar.
Não podemos permitir que convicções baseadas em interesses privados manipulem
os processos judiciais, sujeitem os tribunais a uma autêntica coação e criem o
ambiente propício a uma definição do Direito que esteja para além das razões e
dos valores da Ordem Jurídica.
Aos
juristas – sejam magistrados, advogados ou professores de Direito –, resta não
cair na tentação de Pilatos e impor a lógica do Direito de acordo com os
critérios da sua validade, como fez Thomas Morus com o sacrifício da sua
própria vida. Quem se aventure numa carreira jurídica tem de vencer quaisquer
tentações de politização e de tecnicismo vazio.
(Coluna
segundo as regras do Acordo Ortográfico)
(in Correio
da Manhã [on line], Domingo, 8 de Abril de 2012)
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